O Sagrado selvagem


A missiologia no século XX: Pacto de Lausane e o CMI
fevereiro 22, 2012, 8:30 pm
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Conferência de Edimburgo, 1910A missiologia no século XX: Pacto de Lausane e o CMI.

 

Nosso objetivo neste texto é discutir o projeto missionário presente em dois documentos surgidos em momentos distintos, e que por sua vez, refletem a realidade eclesiológica do tempo presente.

Os dois documentos em questão, tanto o Pacto de Lausanne quanto às resoluções da 9ª Assembléia do CMI, são fruto deste contexto onde ocorre a reformulação de um novo paradigma missionário para o século XXI. Com a crescente crise do socialismo soviético e dos movimentos emancipatórios – que mais se assemelham a formas de salvação secularizadas (feminismo, movimentos estudantis, contra-cultura e outros) – trazem à tona a necessidade de se pensar uma nova proposta de Teologia da Missão.

 

Esta nova fase do projeto missionário mundial é caracterizada por duas demandas trazidas à tona pela crise do mundo pós-Guerra Fria, que são o cuidado com a salvação espiritual e as questões sociais insurgentes em diversos setores da sociedade. Permanece a preocupação com a salvação das almas e agora, a Missão se vê diante do desafio de responder as demandas sociais que não foram atendidas pela proposta iluminista. Cabe lembrar, que neste momento, o paradigma missionário está caminhando em um processo de constantes metamorfoses desde o século XIX. Se no passado o projeto iluminista de emancipação da humanidade através da racionalidade científica não logrou grandes resultados, no presente, a Igreja ressurge em seu fervor missionário, contudo, questionando os paradigmas missionários que faliram junto com a proposta iluminista de evangelização como sinônimo de civilizar.

 

Assim podemos destacar como paradigmas missionários emergentes alguns aspectos que servirão para contextualizar a leitura dos documentos missionários de Lausanne e do CMI. Em primeiro lugar, podemos dizer que este novo paradigma é marcado pela passagem de uma visão missionária em que a igreja passa a ser igreja-com-os-outros. As conferências missionárias mundiais vêm mostrando a evolução deste novo paradigma, como Edimburgo (1910) e pergunta sobre a ausência de um entusiasmo missionário do Ocidente; Jerusalém (1928) e o abandono da distinção entre países cristãos e não-cristãos, englobada pela Guerra Mundial, simboliza o auge da crise do paradigma missionário do século XIX, na constatação de que a América do Norte e a Europa também precisam de missão. A missão centrada na igreja passa a uma igreja que está centrada, que só se faz igreja estando em missão no mundo. Segundo Bosch, a obra salvífica precede a igreja e a própria missão. A missio Dei nos converte uma fé missionária em que a “missão mundial cristã é de Cristo, e não é nossa” [1].

 

Surge assim a seguinte questão: A missão deve estar preocupada com a salvação individual e relegar a um segundo plano a preocupação com o ser humano integral? Mesmo no protestantismo norte-americano, podemos ver em Jonathan Edwards (1703-1758) a preocupação com a obra da Redenção com duas faces. Uma é a de converter, santificar e glorificar o ser humano; a outra está relacionada ao plano de Deus em redimir o mundo através da Providência. Mas para Edwards os dois projetos são inseparáveis[2].

 

Contudo, ao longo do tempo estes dois elementos vão se distanciando de forma sucinta, ganhando a primazia o aspecto da preocupação com a salvação da alma. Há um retorno a visão agostiniana dualista, onde a Cidade de Deus se apresenta como um alvo que deve ser perseguido pelo cristão, ou seja, o objetivo da evangelização é salvar a alma das pessoas, e o resto é uma conseqüência relegada ao segundo plano. Com o tempo os Grandes Avivamentos revelaram a falência da proposta de salvação integral presente no início do movimento missionário norte-americano. Essa idéia ficará clara na objeção presente entre o Fundamentalismo e a “terrenalidade” do Evangelho Social no final do século XIX.

 

Segundo Bosch, é nos anos 1970 que ocorre a crise na idéia de salvação. A queda da esperança nos “secularismos” [3] e os movimentos libertacionistas de salvação que começam a ser postos em questão, aonde a salvação viria com o fim da injustiça, da pobreza e das formas de servidão, causou um profundo abalo nas perspectivas missionárias da primeira metade do século XX.

 

“Não pode restar dúvida de que a interpretação de salvação que emergiu no pensamento e prática missionários recentes introduziu nessa definição elementos sem os quais ela seria perigosamente estreita e anêmica. Num mundo em que as pessoas dependem umas das outras e cada indivíduo existe em uma rede de relacionamentos inter-humanos, é de todo inviável limitar a salvação ao indivíduo e a seu relacionamento pessoal com Deus. Ódio, injustiça, opressão, guerra e outras formas de violência constituem manifestações do mal; a preocupação com a humanidade, a vitória sobre a fome, a doença e a falta de sentido fazem parte da salvação pela qual esperamos e trabalhamos. Os cristãos oram que o reino de Deus venha e que a vontade de Deus seja feita assim na terra como no céu (Mt 6,10); conclui-se daí que a terra é o locus da vocação e santificação da pessoa cristã.” [4]

 

 

Em 1974 ocorre a reunião do Congresso Internacional de Evangelização Mundial em Lausanne que propõem chama “Pacto de Lausane”. Neste documento ficam expostas as concepções missionárias que englobassem a pregação do evangelho e a responsabilidade social. Participou desta conferência John Stott, que em resume bem a proposta do Pacto:

 

“Agora vejo mais claramente que não apenas as conseqüências da comissão, mas a comissão em si precisam ser entendidas no sentido de incluir a responsabilidade tanto social quanto evangelística, para que não nos tornemos culpados de distorcer as palavras de Jesus”. [5]

Mas apesar do documento de Lausanne preconizar a relação entre a evangelização e a ação social, o resultado conseguinte foi uma primazia da conversão em detrimento da responsabilidade e da visão com o ser humano em sua integralidade. Logo a seguir, em 1982, reúnem-se em Grand Rapids, Michigam 40 estudiosos em uma “Consulta sobre a Relação entre Evangelização e Responsabilidade Social”. Neste encontro alguns participantes se sentiram incomodados com o PL e sua primazia pela evangelização. Ficou estabelecido que entre a escolha de matar a fome e salvar a alma, devemos lembrar que o último representa maior importância, pois, a salvação espiritual de uma pessoa é mais importante do que seu bem-estar temporal e material. No Pacto de Lausane ficaram afirmados os cinco pontos principais que caracterizam o que chamamos de movimento evangelical:

 

  1. Crença no único Deus eterno, criador e salvador do mundo;
  2. Inspiração Divina e infalibilidade das sagradas escrituras;
  3. Há um só salvador e um só evangelho;
  4. Evangelizar é difundir as boas novas de Jesus Cristo morto e ressurreto;
  5. Deus é o Criador e Juiz de todos os homens;
  6. O propósito de Deus é que haja unidade universal na Igreja;
  7. Deus está levantando igrejas jovens para reavivar o movimento missionário, pois temos mais de dois milhões de pessoas a serem evangelizadas, e isto é preocupante;
  8. Deus está inspirando novas estratégias missionárias, com o surgimento de igrejas enraizadas em Cristo e relacionadas com a cultura local;
  9. O foco da evangelização é o crescimento numérico da igreja, sendo esta uma preocupação distinta do crescimento espiritual dos novos convertidos;
  10. Reconhecimento de que as ideologias externas da Igreja representam a atuação do inimigo presente nas propostas do secularismo;
  11. O Estado tem o dever de garantir a paz e a justiça para que as igrejas possam exercer sua tarefa;
  12. Por fim a afirmação de que a Igreja tem sua essência na missão, que é inspirada pelo Espírito e a crença de que Jesus Cristo voltará para buscar a igreja.

 

Nesta proposta podemos perceber que há a primazia de uma visão que já estava presente no nascedouro do movimento evangelical. Em 1910, a Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana Americana, ficaram decididos os cinco pontos fundamentais da fé cristão que são: O nascimento virginal de Cristo; a ressurreição corpórea de Jesus; a inerrância das Escrituras; a teoria substitucionária da expiação e a iminente volta de Cristo[6].

 

Agora passemos a análise da proposta do CMI, em sua 9ª Assembléia Mundial ocorrida em Porto Alegre em fevereiro de 2006, reunido mais de 40 mil pessoas, com o tema “Deus, em tua Graça, transforma o Mundo”. O tema já traz em si uma tonalidade muito distinta do PL.

 

As questões discutidas na Assembléia estiveram em torno de alguns que visam definir as prioridades de trabalho para os próximos anos. Estas prioridades foram trabalhadas e sistematizadas pela secretaria geral, em Genebra, e foram traduzidos nos seis eixos programáticos a seguir:

1. O CMI e o movimento ecumênico no século XXI
2. Unidade, missão, evangelismo e espiritualidade
3. Testemunho público: abordando questões de poder e afirmando a paz
4. Justiça, diaconia e responsabilidade pela Criação
5. Formação e educação ecumênicas
6. Cooperação e diálogo inter-religiosos

Algumas das declarações do encontro resumem bem a proposta do CMI, como vemos a seguir:

“Nós, os delegados para a Nona Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas, cremos em num só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, que tem trazido diálogo por graça e habilitado a permanecer juntos, mesmo quando isto não tem sido fácil. Tem sido feito esforço considerável para ultrapassar as divergências. Somos uma comunhão de igrejas que confessam o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador, segundo as Escrituras, e, por isso, procuram cumprir as suas palavras. Reafirmamos que o objetivo principal da bolsa de igrejas no Conselho Mundial de Igrejas é uma chamada para uma visível unidade na fé, expresso em adoração eucarística e na vida comum em Cristo, através do testemunho e do serviço ao mundo, e para avançar no sentido da unidade a fim de que o mundo possa crer. Nossas contínuas divisões são verdadeiras feridas ao corpo de Cristo, de Deus e da missão no mundo que sofre.”[7]

 

Ficou decidida nesta Assembléia uma “Nova Constituição”. Os delegados revisaram a as regras que norteiam o CMI, adotando o processo de decisões baseado no Consenso e alterando os critérios de membresia. Esta atitude significa a inclusão de igrejas de diferentes contextos culturais, presentes com a participação das Igrejas Ortodoxas.

O tema da “Unidade da Igreja” trouxe a provação de texto “Chamado para ser uma só igreja”, encorajando os membros do CMI priorizar aos temas de unidade, catolicismo, batismo e oração. Os delegados solicitaram que o movimento ecumênico oferececem ao mundo “uma mensagem espiritual cristã, coerente e cheia de graça”. Também foram fortalecidas as relações com a Igreja Católica e com as Igrejas Pentecostais. Seguindo o chamado do Secretário Geral a Assembléia apoiou uma proposta de “explorar a viabilidade da estruturas para assembléias do CMI” que se poderia vincular a reuniões globais de outros corpos de igrejas nos próximos anos. Destacamos a participação dos jovens na elaboração e discussão ocorrida no evento.

Segundo o seu coordenador, “O CMI deve fazer menos, fazê-lo bem, de uma forma colaborativa e interativa”, disse o Rev. Dr. Walter Altmann (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil).

As resoluções e propostas discutiram ainda temas como a Igreja em busca pela paz, questões de interesse público como o terrorismo, reforma agrária, a violência em todas as suas esferas, e o diálogo com os seguidores de outras fés.

 

Conclusão.

A partir de uma leitura comparada das duas propostas, podemos perceber elas estão situadas em dois pólos que são oriundos de um processo histórico ao qual está inserida a missiologia.

Vimos que a missão ao longo do século XX passou por uma crise de paradigma, que havia sido estabelecido no século XIX tendo como influencia o projeto civilizatório do iluminismo na missão da igreja. A ruptura com este paradigma trouxe uma nova situação a missão. Agora as igrejas não são mais o centro da vida e precisam buscar alternativas missionárias. Os diversos encontros missionários do século XX ficaram em torno de duas correntes, de um lado os evangelicais e do outro o movimento ecumênico.

A questão central é como apresentar uma proposta missionária para o mundo contemporâneo? Surgem diversas alternativas, desde o surgimento dos movimentos secularizantes na igreja, assim como o recrudescimento do fundamentalismo em algumas vertentes evangelicais. Podemos concluir que a proposta de Lausanne se enquadra neste último movimento, com uma visão eclesiológica ainda muito arraigada no protestantismo missionário do século XIX. Já a 9ª Assembléia do CMI em Porto Alegre, traz uma abertura de horizontes em relação ao projeto missionário, incluindo o diálogo e a abertura ao seguimento de Cristo que se fez mundo com o mundo.

 


[1] BOSCH, p. 447.

[2] Idem, p.483.

[3] Seguimos aqui o conceito de secularismo a análise de Harvey Cox,

[4] BOSCH, David J, Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão. São Leopoldo, RS:EST, Sinodal, 2002, p. 475.

[5] Idem, p. 485.

[6] NETO, Luis Longuini. O Novo Rosto da Missão: Os movimentos ecumênico e evangelical no protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002. p.22-23


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