O Sagrado selvagem


Religiosidade nas margens: Antropologia do Estado a partir da experiência religiosa dos pregadores do trem.
fevereiro 23, 2012, 6:19 pm
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“(…) os grandes eventos políticos ecoavam no registro familiar por meio de um enfrentamento repetido com o que chamei de conhecimento venoso”. (DAS, 1999:32)

Introdução…

São aproximadamente 8:00h da manhã de uma segunda-feira. Ao entrar no vagão o que se observa é uma paisagem confusa. São pessoas a caminho do trabalho com seus semblantes de sono e cansaço. Ambulantes cruzam o vagão com todo o tipo de mercadoria. Calor e barulho nos aproximadamente 20 minutos de viagem que leva da Estação de Cordovil até a Central do Brasil, trecho pertencente ao ramal Saracuruna/Gramacho. Este seria apenas um breve relato sobre o cotidiano dos trens da cidade do Rio de Janeiro. Cotidiano que retrata a realidade social brasileira marcada pela desigualdade social e a incapacidade do Estado de garantir a cidadania para todos.

Trata-se de um cenário da exclusão. Mas dentre essas imagens retratadas no texto, surge uma outra realidade. Eis que no meio da multidão, ouço uma música. Pessoas em diferentes assentos do vagão, de olhos fechados e Bíblias nas mãos, cantam de forma entusiasmada.

“E por você Deus estremece terra/ quebra as cadeias pra te libertar/ onde estiver Ele manda um anjo até no cativeiro pra te libertar / Deus entra em cena contra os inimigos e mostra que contigo Ele sempre estar/ Quem tocar em você está tocando em Deus e procurando fogo para se queimar/ Você está na sombra do onipotente/ Você tem mil motivos pra seguir em frente/ Quem vier te ofender com Deus vai ter que guerrear/ Com lágrimas nos olhos você ora / solução a Deus implora forças pra poder viver/ (…) No seu pranto ele vem e manda alguém te socorrer. E por você…/ (…) Agradeço a oportunidade em nome de Jesus. Aleluia!” [1].

O que leva uma pessoa em plena manhã de segunda-feira, em um trem superlotado, rodeada por vendedores ambulantes e pessoas cansadas, romperem com este quadro cotidiano e, com suas Bíblias e hinários, começarem um culto evangélico em plena viagem?  O que se esconde na sombra de um discurso como este? Vamos evocar o brado de ópio do povo, neurose e ilusão? Restam inquietações.

Inquietações surgidas quando se observa o cotidiano e não apenas se acomoda ao que está na superfície do social. Vontade de perceber neste cotidiano, em sua forma venal, a permanência de dinâmicas sociais que se revelam porosas. Ou no dizer de Veena Das (1999), descobrir esse conhecimento venoso, captar no cotidiano da cidade as demandas sociais que emergem a partir de tensões locais. Tensões estas que demarcam distanciamentos e aproximações entre o centro e as margens do Estado.

O objetivo deste artigo é pensar as relações entre o Estado – sua estrutura de poder, a lógica administrativa da cidade – e as demandas locais a partir dos discursos e narrativas dos pregadores do trem [i]. A proposta é compreender o Estado e suas relações com a religiosidade a partir de um estudo de caso sobre os pentecostais e sua atuação nos trens da cidade. Compreender nas margens do Estado o fenômeno religioso dos cultos evangélicos, deixando de lado o discurso marginalizador que os coloca na categoria de “fanáticos”, “exóticos”; da crítica oriunda do protestantismo mais institucionalizado[ii] que não os vê com “bons olhos”, até a consumação da proibição dos cultos nos trens por decreto de lei. Iremos analisar o discurso deste grupo e perceber neles a presença de uma forma de agência na sociedade que está silenciosamente embutida no discurso religioso. Seguindo o caminho de Veena Das e Deborah Poole (2004: 4), compreendendo que é necessário no trabalho antropológico captar naquilo que é exceção, um caminho para se compreender a realidade. Uma ótica que possa está além lógica unívoca da racionalidade moderna.

Para começo de conversa: Quem são os pregadores do trem?

Quando comecei a acompanhar estes cultos, estava assistindo o documentário Santa Cruz de João Moreira Sales (2000). O filme mostra o surgimento de uma igreja pentecostal na baixada fluminense. A descrição vai desde a implantação da igreja no bairro e como a igreja transformou aquele espaço. Chamou atenção, no final do vídeo, a cena de um ritual de batismo nas águas, em que em seguida, os fiéis batizados seguem ao trabalho missionário nos trens da Central do Brasil.

Em um artigo sobre o filme, Claudia Mesquita (2009: 160-161) mostra como o surgimento da igreja revela-se enquanto elemento de sociabilidade. Refazendo laços sociais, recriando as dinâmicas locais do bairro que antes era desagregado, e após o surgimento da igreja pentecostal encontra novo meio de revigorar as relações sociais do cotidiano daquelas pessoas [iii].

Da mesma forma, podemos dizer que a igreja no trem preenche os espaços vazios de dignidade, ordem, comunidade e relações sociais. São indivíduos que a partir de sua experiência religiosa, reconstroem os laços sociais destituídos de significado mediante a violência e a burocratização da rotina de trabalho.

“… há vozes que falam em retorno do sagrado. É uma idéia com a qual não concordamos, pois ela supõe um eclipse do sagrado que, escondido por algum tempo, volta à cena coberto de fantasias multicores e de gestos novos. O sagrado nem se eclipsou nem adormeceu em sono profundo. Basta pensar no pentecostalismo para a gente se dar conta de que o sagrado esteve sempre presente e assumiu formas diferentes das costumeiras modalidades de expressões religiosas”. (ROLIM, F. C., 1989: 646)

Feuerbach afirma que a religião é o sonho do espírito humano (1988: 31). Aquilo que é tido com ilusão na experiência pentecostal, na verdade, revela elementos que potencializam uma construção simbólica da realidade. Não se trata aqui de pensar o religioso em si, mas a capacidade humana de dar sentido ao real, a toda construção simbólica que ele exerce nos espaços em que freqüenta – seja ele um templo ou um vagão de trem. Não há aqui uma diferenciação entre o sagrado e o profano, mas sim, uma realidade e sua descrição, que pode se dar em diversas instâncias. São dinâmicas que podem ser influenciadas pelas leis do Estado ou pela religiosidade pentecostal. No caso do culto no trem, o que se percebe é que tais relações são atravessadas pela experiência religiosa.

A proibição dos cultos no trem

Em 4 de setembro de 2009, o Ministério Público proibiu por unanimidade de votos as manifestações religiosas nos trens [iv]. O espaço que era um lugar de sociabilidade para parte dos freqüentadores agora estava sob o controle da lei e da ordem. Trata-se de um caso onde o Estado promove formas de gestão da vida e controle das margens. O caso da proibição dos cultos no trem certamente está em outro contexto. Contudo, indo além na leitura, podemos estabelecer algumas aproximações epistemológicas através da concepção de uma antropologia nas margens do Estado.

 

A proposta é considerar a etnografia como uma forma de abordagem que privilegie as particularidades sem, no entanto, abandonar as temáticas universais, como cidadania, democracia, a própria noção de Estado-nação, tão caras para a compreensão do social. Por isso esta etnografia nas margens, que foge do olhar sobre o exótico e  tenta perceber naquilo que excede o alcance da racionalidade do Estado elementos que constituem a própria sociedade (DAS, POOLE, 2004: 4).

Não é preciso ir muito longe para perceber que estas pessoas que participam dos cultos no trem são indivíduos insuficientemente socializados pelas leis, e sofrem diversos tipos de exclusão social conseqüência da incapacidade do poder público de dar conta das demandas locais. São moradores da Baixada Fluminense, trabalham como faxineiros, porteiros, empregadas domésticas que saem de casa às 4h da manhã para cumprir o longo trajeto até a Zona Sul. Passam por verdadeiros obstáculos para chegar ao trabalho, convivendo ainda com atrasos e falhas conseqüências da precariedade do sistema ferroviário da cidade. E diante de tais problemas, ainda sim, não podem reagir contra o poder privado, pois quando o fazem, são publicamente marginalizados pela mídia [v]. Chegando a ponto de em alguns casos, por conta da insatisfação e nervosismo com que reagem aos problemas técnicos e atrasos, de serem referidos como terroristas [vi]. Entram em confronto com questões sobre legibilidade e ilegibilidade do Estado, seus documentos, decretos. Revelam como tudo isso é parte do exercício de controle dos territórios e vidas.

Esta abordagem possui reflexos claros do pensamento foucaultiano (FOUCAULT, 1999), principalmente quando se toca na questão do biopoder e a gestão da vida. O que está me jogo nesta realidade é o aspecto das leis e interdições que são sobrepostas às particularidades do social, e ao mesmo tempo, sua produção de normalidades, criação de categorias elaboradas pelo Estado que reforçam o impacto sobre o controle da vida e a elaboração dos espaços da cidade.

É aquilo que é marginalizado e incluído nas formas de categorização e controle racional. Seguindo esta pista, podemos pensar em uma etnografia do Estado a partir do cotidiano, compreendendo os símbolos de controle e racionalização, políticas reguladoras e todo o aparato burocrático do Estado nos eventos mais cotidianos da cidade. Com isso questionamos: De forma as agências locais se articulam com as leis universais do Estado? Como o fato da proibição dos cultos nos trens pode contribuir para uma leitura antropológica do Estado?

A singularidade presente nestes grupos de pregadores do trem chamou à atenção e que deu origem a esta reflexão. A prática dos cultos no trem traz uma criatividade social capaz de responder criar um mundo novo naquele espaço. Naquele lugar acontece algo que pode ser identificado como uma experiência religiosa que está para além dos limites da racionalidade moderna, criando e recriando novos acordos sociais que nem sempre estão em diálogo com as demandas do poder institucionalizado. Existem rituais da vida comum que não se dobram as análises sistemáticas do jogo da racionalidade moderna. Eles estão cheios de uma sensibilidade coletiva, são provocados por sorrisos, gestos pequenos. Eles não são inúteis e contrários aos grandes movimentos sociais. Em tudo isso o que se pretende e mostrar é a realidade cotidiana do culto no trem como forma de agência e sociabilidade.

Entre o local e o universal na experiência religiosa da cidade

Existe um dinamismo novo que surge com a crise societária da modernidade. Ele foge da racionalidade universalizante do Estado weberiano (DAS e POOLE, 2004:7). A crise do projeto societário da modernidade – a exemplo do holocausto nazista e os genocídios em massas ocorridos no século XX – trazem de volta aquilo que aparentemente esteve ausente na sociedade: O papel do sagrado e suas expressões simbólicas diante da incapacidade da razão moderna em oferecer respostas aos dilemas do ser humano contemporâneo diante da constante fragmentação social da realidade. Sendo assim, pretende-se dizer que toda a manifestação social surge a partir de pequenos nadas que, por sedimentação, constituem um sistema significante. A prática dos pregadores do trem constitui um destes inúmeros fenômenos, e que por sua vez, não pode ser engaiolado em sistemas universalizantes.

Religiosidade e agência local nas margens do Estado

 

Pois bem, o que esses grupos causam na sociedade que leva a intervenção estatal de forma tão incisiva? Segundo José Bittencourt Filho (1996: 32), o pentecostalismo oferece uma espécie de remédio para os problemas oriundos da desigualdade social, em que as demandas populacionais nem sempre são alcançadas pelo Estado. Como as políticas públicas não alcançam a maior parte da sociedade, a solução seria buscada por outros meios, e este seria o que segundo o autor é considerado o remédio amargo.

 

Tal referência à amargura do remédio tem um fundo histórico (Id., Ibid.: 33). Já vem de longa data a estigmatização do pentecostalismo diante do crescimento ocorrido nas últimas décadas do século XX [vii]. Devido aos escândalos ocorridos envolvendo lideranças evangélicas (principalmente pastores) despertou um sentimento de desconfiança na sociedade em relação aos chamados evangélicos [viii]. O relato do Frei Leonardo em um jornal da época revela marcas do estigma imposto aos pentecostais, onde ele afirma que “se tivéssemos (católicos) uma liturgia enculturada, que desse resposta ao povo no dia-a-dia, muitos dos nossos que estão saindo ficariam em casa e não iriam atrás desses grupos” [ix].

É latente neste discurso a exclusão destes grupos por conta de sua suposta ignorância. Diante da pobreza vivida, a falta de resposta natural aos dilemas sociais vividos pelo povo marcado pela ignorância política, teria sido a causa do surgimento de uma religiosidade que torna essas pessoas vulneráveis aos abusos da fé [x].

Claro que devemos considerar os fatos. Estudos já feitos no Brasil apresentam esta relação entre a pobreza das sociedades latino-americanas e o crescimento do pentecostalismo. Segundo Cecília Mariz (1989, 1991), o pentecostalismo está relacionado à superação dos problemas sociais, como alcoolismo e pobreza.

“A situação de algumas pessoas pobres no Brasil (…) pode ser comparada com a situação de um prisioneiro. A carência total de recurso acarreta um grau muito limitado de oportunidade para escolha, ou seja, uma liberdade muito limitada. A similaridade entre um prisioneiro e de uma pessoa extremamente pobre, foi salientada por um habitante de favela no Recife”. (MARIZ, 1994: 20)

Mas não podemos cair na armadilha e olhar para o pentecostalismo como um bloco homogêneo. Consideramos aqui as dinâmicas locais com toda a vitalidade possível de criar e recriar o social à sua maneira.

“O indivíduo tem um valor em si mesmo, por si mesmo, e tudo se torna significativo em função da maneira como ele elabora subjetivamente a realidade à sua volta. É a sua experiência individual que é relevante, atravessando as fronteiras físicas e simbólicas de sua rede de parentes, comunidades, etc.”. (VELHO, 1980: 19)

 

Em contraponto ao discurso que tende a generalizar os pentecostais como ignorantes, sem senso de participação na elaboração dos seus vínculos sociais, é interessante perceber como no trem, o discurso desses pregadores é dotado de uma particularidade que foge à regra do que é dito sobre eles.

“Ei querido, você louva a Deus quando você abre o seu armário, no guarda-roupas, lá  está as melhores vestimentas pra você,  é mole! Você engrandecer ao nome de Deus, quando você abre o teu armário de cozinha e lá está do bom e do melhor, é fácil! Você com dinheiro adorar ao Senhor, é mole! Mas há circunstâncias nas nossas vidas, que o Senhor estreita as coisas, aperta, pra ver se verdadeiramente você adora. Às vezes o nosso Senhor permite, que alguma coisa na sua família aconteça, para ver se verdadeiramente você adora a Deus, pelo que ele é ou pelo que ele pode te dar. Adorar a Deus pelo que ele pode te dar é fácil. Mas adorar a Deus pelo que ele é fica difícil. Ainda mais como Paulo e Silas. E a Bíblia diz que por volta de meia noite eles começam a louvar ao Senhor. Meu Senhor se inclina querendo ver do alto do céu até a terra, e assiste Paulo e Silas louvando ao nome santo do criador, e perto da meia noite houve-se um grande terremoto, o cárcere foi-se aberto, Paulo e Silas foi liberto” [2].

 

É possível ver através da ótica estabelecida a partir da relação pentecostalismo-pobreza, um discurso que de certa forma, é uma forma de lidar com a dor e com o sofrimento. Segundo Birman (1997), o pentecostalismo desenvolveu uma religiosidade que explora, diferentemente do sincretismo católico, uma expécie de policentrismo do mal (Id., Ibid.: 64). De acordo com a autora, os males do cotidiano são vistos como exemplos de que o mal atua nas diversas situações. Contudo, diferentemente do catolicismo brasileiro e as religiosidades sincréticas, para o pentecostalismo, o mal faz parte da ordem cotidiana. Ele não está na categoria de mal absoluto, portanto, pode ser combatido através da agência do indivíduo, que se equilibra nesta balança entre bem e mal através de seu comportamento ético-moral.

“Só Deus sabe como está o teu caráter hoje. Até quando alguém pisa no teu pé a vontade que te dá e a ira sobe e meter a mão na cara! (…) Deus quer trabalhar no teu caráter! (…) Pedro era um homem falso (…) Dentro do vagão você diz que é bom, é crente, mas lá, fora só Deus sabe o que você apronta. (…) Há um Deus que quando ele fala, ele não fere, e quando ele fere, ele sara. A Bíblia diz que ele corrige aquele ao qual ele ama. E se Deus te corrige nesta manhã querido (…)” [3].

Vejamos. Em uma sociedade onde ocorre a ausência do Estado em várias instâncias. Carências que vão do sistema de saúde à assistência social mais básica, como ausência de políticas públicas principalmente nas margens da cidade, o discurso destes pregadores do trem pode ser de certa forma, considerado como agenciador simbólico de solidariedade e construção de valores socialmente aceitos por um determinado segmento da sociedade marginalizada. Onde as políticas preventivas não alcançam estas populações, como o caso da saúde pública na prevenção de problemas sociais como alcoolismo e tabagismo, a experiência religiosa pode ser considerada como uma outra forma de agenciamento diante da ausência do Estado.

“(…) lá em João dezessete que diz assim: Pai, a vida eterna é esta tenho em ti como um único Deus verdadeiro eu sou Jesus Cristo, a quem tu enviaste. (…) o ser humano é quem complica tudo. Ah! Se todos os seres humanos colocassem sua certeza, sua confiança, sua vida somente em Jesus Cristo. Gente o mundo esta desmoronando, o mundo esta sendo corroído como uma pessoa com o vírus do HIV, ele está indo de mal à pior, porque muitos não querem aceitar Jesus como um único Salvador. Jesus diz assim ó: A luz veio a este mundo eu estou, o que ele falou mesmo” [4].

A religiosidade está ligada sim a uma forma de enfrentamento da pobreza, mas também como podemos perceber, a fala destes pregadores traz elementos que transparecem questões que estão ligadas à ausência do Estado na sociedade. Se olharmos para as demandas presentes nas pregações, iremos perceber o Estado como algo indissociável das periferias. Em sua fala eles tocam em questões cotidianas, como aponta Birman (1997), doenças, desempregos, alcoolismo, etc. Através do discurso da luta contra o mal podemos demonstrar a partir das necessidades destes grupos uma chave analítica para questões de ordem pública.

A proibição dos cultos e os dispositivos estatais de controle

Nas margens do Estado percebemos questões que estão no centro. Estes indesejáveis não são apenas um fenômeno religioso. São também um fenômeno que revela a incapacidade do Estado em corresponder aos problemas sociais, que por sua vez os transforma em indesejáveis e contrários à ordem pública. Como o caso relatado a seguir, que narra o diálogo entre um dos pregadores do trem como funcionários da empresa.

“Passei o pandeiro dentro do trem muitas das vezes incomodando a nossa viagem, muitas das vezes querendo ler um jornal, tirar um cochilo, e eles fazendo a acusações dele. Mas eu lhe peço calado, só orando. De repente meus querido, vem um senhor. E aquele senhor diz assim: Olha eu estou aqui ouvindo a acusação de vocês, naquela época CBTU, não sei se vocês se lembram, aqui os trens andava tudo de porta aberta, o trem anda tudo pichado, muitos jovens andavam em cima do trem quantos deles morreu ai em cima do trem né [xi] ? Então, se levantou o senhor e disse assim: – Olha eu vou fazer uma pergunta a vocês e eu quero que vocês me respondam. A gente nem sabia quem era aquele senhor que levantou. Disse assim: É os crentes que anda pichando os trem? Eu quero que vocês me respondam. Eles falaram assim: Não. É o crente que anda segurando as portas do trem? E mais uma vez: Não. É os crentes que ta segurando a porta do trem? Não, eles disseram assim. É os crentes sambando em cima do trem? E eles disseram não. Você sabe que na época da CBTU, quando nego não respeitava um a outro, nego fumava dentro do trem. Olha gente, na época da CBTU, isso aqui tava tudo desorganizado. Quem viaja bastante em pé no trem sabe que eu estou falando então aquele senhor disse assim: É os crentes que anda pichando os trem? E eles disseram não. Aí, disseram assim: Olha o que eu vou fazer então se você se comporta como ele, nós não tinha tanto prejuízo como nós temos” [5].

No caso acima, o relato do pregador relembra e nos mostra que essa repressão aos pentecostais que se consumou com a proibição dos cultos em 2009 já vem de longa data. Impressiona ver como que no discurso dos pregadores, é impossível separar o aspecto sagrado – do combate ao mal – de questões políticas. Aqui podemos ver como eles se articulam dentro da realidade. Ao mesmo tempo em que há uma atribuição aos males da vida referindo-se ao sobrenatural, há também uma visão de que o mal da realidade tem endereço, possui nomes, é feito por pessoas.

O problema da cidade e os mecanismos de controle.

Vem do século XIX o nascimento da tomada da vida pelo poder. Para Foucault (1999), a partir deste século ocorre a estatização do biológico e o direito de “fazer morrer, deixar viver” (Id., Ibid.: 289). Em lugar do poder opressor do tirano, passou a vigorar a partir da lógica da modernidade, manter os humanos vivos e seguros. Cuidar do corpo e ter o controle sobre suas ordens. Surge assim todo um discurso que deseja transformar a cidade em um lugar limpo, um espaço de organização e ao mesmo tempo repleto de hierarquias. A modernidade representou a transição de poder: Do soberano absoluto à micro-instâncias de controle disseminadas pelo social como os poros de uma pele.

“… para seguir Jesus, você que é jovem ai meu amigo, sexo fora do casamento é pecado. Tem que esperar até a hora de você casa. Jesus não é mole não, viu? Pra seguir Jesus, se fuma maconha, vai larga a maconha! Cheira cocaína? Vai largando essa praga por que isto destrói o mundo de Deus? Se viciado no álcool? Vai larga o álcool! Porque Jesus meu amigo é duro. Venha adorar somente o Senhor. Vem! Larga essa judaria. Vem! Larga o ódio, a mágoa, pense você que com o Rei, você tem que parar com isso. Por isso que muitos não querem aceitar Jesus. Jesus é ruim porque com Jesus eu não vou poder fazer isso. Ah! Porque meu amigo? Jesus é a coisa mais linda do mundo, e é Jesus meu amigo quem luta com Diabo para você não aceitar Jesus, qualquer um aqui aceitou Jesus como Salvador, mas ao pisa na cabeça do Diabo (…) é o único povo que tem autoridade de colocar Satanás de joelho e nenhum outro povo que tem autoridade e poder de Deus para colocar o Diabo de joelho, e você dizer que ele é um derrotado  […] É o único povo que tem o poder de orar, porque a oração rasga e Deus desce com a resposta através de nossas orações. Pessoas estão sendo curadas do câncer, casamento está sendo restaurado, obras de macumba e bruxaria está sendo desfeito, jovens estão sendo libertos das drogas, traficante esta largando o tráfico, prostituta esta largando a prostituição, o homem esta largando o homossexualismo, que isso é uma praga, porque isso é um pecado diante de Deus, viu? Deus esta fazendo maravilhas. Senhor eu entrego sua filha em tuas mãos e lhe de todo o espírito de sabedoria, porque o Senhor esta fazendo maravilhas em nome de Deus” [6].

Temos questões distintas imbricadas em um único discurso. Ao mesmo tempo há a presença da atmosfera religiosa permeada pelo imaginário da luta contra o mal, e ao mesmo tempo, podemos perceber preocupações que revelam questões que estão na pauta do dia nos debates da agenda do Estado. Se por um lado a droga e o homossexualismo são demonizados, por outro, temos aspectos que remetem à capacidade de comunicação que estes indivíduos conseguem alcançar, em um setor da sociedade que não tem acesso aos meios de comunicação por onde são viabilizadas informações sobre saúde, educação, segurança etc. Tais demandas estão presentes na dinâmica do Estado moderno e sua proposta de controle e ordenação do social. Porque então proibir os cultos?

Creio que não cabe a este trabalho tal resposta. Está claro que há questões envolvendo a questão do pluralismo cultural presente e o papel do Estado em querer gerir forças que se confrontam. É intrigante perceber como que no discurso pentecostal do trem aparecem as lacunas deixadas pelo poder público.

Um outro aspecto que podemos destacar é como se confrontam diferentes formas de utilização do espaço. Segundo Foucault (1986), vivemos na era da simultaneidade do espaço. É do século XIX a preocupação com tempo e o acúmulo. Atualmente vivemos a era do espaço relacionado ao dinamismo social, das mudanças e confrontos de idéias até a eminência de novas representações. O autor apresenta uma abordagem do social que permite uma interpretação plural da sociedade, levando em conta atores e fenômenos que anteriormente seriam descartados devido ao seu caráter marginal e inconstante.

O trem simboliza este tipo de apropriação do espaço. O que seria uma forma de socialidade periférica, revela-se como espaço de simultaneidade onde diversas experiências com a realidade coincidem. Houve uma quebra na normatização e fixidez dos espaços, e a cidade por excelência é esse lugar, onde diferentes formas de agenciamentos se entrecruzam de forma plural.

Sendo assim, não é possível qualquer tipo de dicotomia da realidade no instante em que vemos questões referentes ao Estado. Elas estão presentes de maneiras distintas e se relacionando de forma dinâmica no mesmo espaço. O trem representa essa transitoriedade e sobreposição dos diferentes agentes sociais. São essas heterotopias, onde se torna impossível definir quem é o outro. Há uma presença sincrônica de diferentes. O caso dos pregadores do trem pode ser uma amostra deste fenômeno, pois simultaneamente eles se localizam nas margens trazendo em seu discurso aspectos do social que são centrais. É como se a representação fosse permanentemente contínua.

Conclusão

O intuito deste trabalho foi mostrar como a antropologia pode proporcionar novas formas de compreensão da realidade. O caso dos pregadores do trem nos traz o exemplo do potencial criativo das margens. Ali temos a reinvenção das fronteiras sociais que são marcadas através da experiência religiosa por experiências de sobrevivência. Eles revelam estratégias de resistência que precisam se pensadas etnograficamente.

São espaços periféricos que se revelam centrais para pensar de forma antropológica o papel do Estado. Estaria aa Antropologia apenas preocupada com tudo aqui que é exótico e fora do Estado? Quando se diz que antropologia não problematiza o Estado, ela define seu objeto como aquilo que não é Estado. Fica seu objeto relegado a tudo que é irracional.

Podemos perceber na prática dos cultos no trem a centralidade de questões fundamentais para pensarmos aspectos do Estado moderno como a democracia, cidadania, e problemas referentes ao mesmo como a desigualdade social e a incapacidade do poder público de dar conta das demandas locais. A religiosidade destes grupos, de forma silenciosa, traz à superfície tais questionamentos, possibilitando novas formas de aproximação da realidade.

Bibliografia

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DAS, Veena, POOLE, Deborah (eds.) Anthropology in the margins of the State. New Delhi, Oxford University Press. 2004.
DAS, Veena. Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 1999, vol.14, n.40, pp. 31-42. ISSN 0102-6909.  http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091999000200003. [Acessado em 09/01/2012].
FEUERBACH, Ludwig., A essência do cristianismo. Campinas, SP: Papirus, 1988
FOUCAULT, M., De outros espaços, in: http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/obra/outros.prn.pdf . [Acessado em  11/01/2012]
______________., Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: 1999.
MARIZ, Cecília . Alcoolismo, Gênero e Pentecostalismo. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 16, n. 03, p. 80-93, 1994.
MARIZ, Cecília . Coping With Poverty: Pentecostals And Base Communities In Brazil. Philadelphia , USA: Temple University Press, 1994. 224 p.
MESQUITA, Cláudia. Viramundo (1965) e Santa Cruz (2000): Representações fílmicas do pentecostalismo em dois tempos. In.: ALMEIDA, Ronaldo; MAFRA, Clara (org.), Religiões e cidades:Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2009, pp.  151-164.
ROLIM, F. C., A face conservadora do pentecostalismo, in: Religião e Sociedade, ano 83, nov/dez, 1989. n.o 6, p. 646.

[1] Gravado em 28/11/2007.

[2] Gravado em 28/11/2007.

[3] Gravado em 06/11/2007.

[4] Gravado em 15/12/2008.

[5] Gravado em 15/12/2008.

[6] Gravado em 15/12/2008.


[i] Os dados deste trabalho são fruto de uma pesquisa anterior. A pesquisa de campo foi realizada entre 2007 e 2009, onde estive acompanhando os cultos, que sempre aconteciam no último vagão do Ramal Gramacho/Saracuruna pela manhã. Os registros foram feitos através de gravações em áudio e depois transcritas, além de observação e anotações manuais.

[ii] Cf. Mendonça (1995) e Filho (1996). Os estudiosos do protestantismo brasileiro em geral classificam o protestantismo em históricos: oriundos das missões do século XIX, pentecostais tradicionais: desde a fundação da Assembleia de Deus; ainda, temos o pentecostalismo autônimo, que seria um campo sincrético , cf. MENDONÇA, A. G., PRÓCORO, V. F. Introdução ao Protestantismo no Brasil. Traz uma análise da inserção do protestantismo, desde sua origem com o chamado protestantismo de missão dos Estado Unidos, até ó surgimento do pentecostalismo clássico e as igrejas neopentecostais. A literatura sobre o estudo do Pentecostalismo, afirma que a configuração do panorama religioso brasileiro mostra que o protestantismo chamou atenção dos setores burgueses da cidade, seguindo bem a perspectiva weberiana, associando a modernidade burguesa que se sustentou com o pensamento liberal dos protestantes do século XIX; por outro lado, o Catolicismo deu continuidade a sua aliança histórica com os setores agrários, em particular com a elite). cafeicultora. Para estes, o pentecostalismo fincou suas bases, herdando dos primeiros missionários a prática dos cultos nos lares, o anticatolicismo e aquilo que Rubem Alves chamou de Protestantismo da Reta Doutrina. Cf. ROLIM, F. C., Pentecostais no Brasil: Uma interpretação sócio-religiosa, p. 62; ver também ALVES, R., Protestantismo e Repressão; MENDONÇA, A. G., O Celeste Porvir: A Inserção do Protestantismo no Brasil. Cf. tb. a relação entre o protestantismo e a modernidade, ALVES, R. Protestantismo e Repressão, p. 38. “O protestantismo se entende como o espírito da liberdade, da democracia, da modernidade e do progresso. O Catolicismo, por oposição, é o espírito que teme a liberdade e que, como conseqüência, se inclina sempre para soluções totalitárias e se opõe à modernidade. Num passado já vencido pela luz do evangelho jaz, morto, um negro período dominado pela superstição, intolerância, ignorância e escravidão da consciência, à mercê de uma Igreja totalitária, época sombria e triste, iluminada apenas pelas fogueiras da Inquisição. Tal era ainda subsiste hoje entre nós, como um morto entre vivos – fóssil de um tempo soterrado pelo passado: a Igreja Católica. Se perguntarmos à história: “De que lado estás? Qual o teu destino?” Ela responderá: “O Catolicismo é o passado de onde venho. O Protestantismo é o futuro para onde caminho”.

[iii] Cf. “Eu diria que ela se sustenta, em termos de argumento, no movimento ou no crescendo, dado pelo conteúdo de mudança dos indivíduos, do grupo e do bairro onde a igreja se implanta, introduzindo progressivamente e desenvolvido por cada grande segmento cronológico. Esse movimento se dá em direção a um maior grau de dignidade, e todas as mudanças que observamos no filme – na vida dos convertidos, da Casa de Oração ou da vizinhança – expressam essa dignidade propiciada pela conversão. É como se a igreja preenchesse, aos poucos, um espaço vazio, um grau zero de dignidade, de ordem, de comunidade e de relações sociais positivas”. (MESQUITA, Cláudia. Viramundo (1965) e Santa Cruz (2000): Representações fílmicas do pentecostalismo em dois tempos. In.: ALMEIDA, Ronaldo; MAFRA, Clara (org.), Religiões e cidades:Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2009, pp.  151-164.

[v] No final de 2009, problemas causaram fechamento de estações da Supervia. Os usuários causaram protestos, o que gerou tumulto e reações envolvendo a polícia (Jornal do Brasil, Cinco feridos em tumulto, agora na Central do Brasil. Sexta-feria, 9 de outubro de 2009). Outros protestos ocorreram devido ao problemas no sistema de refrigeração dos trens (Jornal O Extra, quinta-feira, 15 de outubro de 2009).

[vi] Jornal O Dia, “Terrorismo nos trens”, sábado 10 de outubro de 2009.

[vii] Cf. FERNANDES, Rubem César (coord.) … (et. Al.). Novo nascimento: Os evangélicos em casa, na igreja e na política. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

[viii] Cf. Folha de São Paulo, Celam denuncia comércio da fé, 5 de novembro de 1990. Reportagem mostra a preocupação de bispos que se reuniram para discutir o crescimento das seitas na América Latina. Em outra reportagem do mesmo jornal (31 de maio de 1990), mostra a preocupação das igrejas cristãs com o crescimento das seitas, referindo-se ao tipo de religiosidade que as novas igrejas estão oferecendo ao povo.

[ix] Cf. Idem.

[x] Cf. Matéria do Jornal do Brasil, Uma guerra santa nas favelas, 30 de julho de 1990.

[xi] Sobre o cotidiano dos trens, é interessante este artigo sobre violência e a repressão antes da privatização da linha ferra. Cf. PIRES, Leni. “Deus ajuda a quem cedo madruga?” Trabalho, informalidade

e direitos civis nos trens da Central do Brasil.in.: GROSSI, Miriam Pillar; HEILBORN, Maria Luiza; MACHADO, Lia Zanota (Organizadoras). Antropologia e Direitos Humanos. Blumenau: Nova Letra, 2006     pp. 185-242.


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