O Sagrado selvagem


Religiosidade nas margens: Antropologia do Estado a partir da experiência religiosa dos pregadores do trem.
fevereiro 23, 2012, 6:19 pm
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“(…) os grandes eventos políticos ecoavam no registro familiar por meio de um enfrentamento repetido com o que chamei de conhecimento venoso”. (DAS, 1999:32)

Introdução…

São aproximadamente 8:00h da manhã de uma segunda-feira. Ao entrar no vagão o que se observa é uma paisagem confusa. São pessoas a caminho do trabalho com seus semblantes de sono e cansaço. Ambulantes cruzam o vagão com todo o tipo de mercadoria. Calor e barulho nos aproximadamente 20 minutos de viagem que leva da Estação de Cordovil até a Central do Brasil, trecho pertencente ao ramal Saracuruna/Gramacho. Este seria apenas um breve relato sobre o cotidiano dos trens da cidade do Rio de Janeiro. Cotidiano que retrata a realidade social brasileira marcada pela desigualdade social e a incapacidade do Estado de garantir a cidadania para todos.

Trata-se de um cenário da exclusão. Mas dentre essas imagens retratadas no texto, surge uma outra realidade. Eis que no meio da multidão, ouço uma música. Pessoas em diferentes assentos do vagão, de olhos fechados e Bíblias nas mãos, cantam de forma entusiasmada.

“E por você Deus estremece terra/ quebra as cadeias pra te libertar/ onde estiver Ele manda um anjo até no cativeiro pra te libertar / Deus entra em cena contra os inimigos e mostra que contigo Ele sempre estar/ Quem tocar em você está tocando em Deus e procurando fogo para se queimar/ Você está na sombra do onipotente/ Você tem mil motivos pra seguir em frente/ Quem vier te ofender com Deus vai ter que guerrear/ Com lágrimas nos olhos você ora / solução a Deus implora forças pra poder viver/ (…) No seu pranto ele vem e manda alguém te socorrer. E por você…/ (…) Agradeço a oportunidade em nome de Jesus. Aleluia!” [1].

O que leva uma pessoa em plena manhã de segunda-feira, em um trem superlotado, rodeada por vendedores ambulantes e pessoas cansadas, romperem com este quadro cotidiano e, com suas Bíblias e hinários, começarem um culto evangélico em plena viagem?  O que se esconde na sombra de um discurso como este? Vamos evocar o brado de ópio do povo, neurose e ilusão? Restam inquietações.

Inquietações surgidas quando se observa o cotidiano e não apenas se acomoda ao que está na superfície do social. Vontade de perceber neste cotidiano, em sua forma venal, a permanência de dinâmicas sociais que se revelam porosas. Ou no dizer de Veena Das (1999), descobrir esse conhecimento venoso, captar no cotidiano da cidade as demandas sociais que emergem a partir de tensões locais. Tensões estas que demarcam distanciamentos e aproximações entre o centro e as margens do Estado.

O objetivo deste artigo é pensar as relações entre o Estado – sua estrutura de poder, a lógica administrativa da cidade – e as demandas locais a partir dos discursos e narrativas dos pregadores do trem [i]. A proposta é compreender o Estado e suas relações com a religiosidade a partir de um estudo de caso sobre os pentecostais e sua atuação nos trens da cidade. Compreender nas margens do Estado o fenômeno religioso dos cultos evangélicos, deixando de lado o discurso marginalizador que os coloca na categoria de “fanáticos”, “exóticos”; da crítica oriunda do protestantismo mais institucionalizado[ii] que não os vê com “bons olhos”, até a consumação da proibição dos cultos nos trens por decreto de lei. Iremos analisar o discurso deste grupo e perceber neles a presença de uma forma de agência na sociedade que está silenciosamente embutida no discurso religioso. Seguindo o caminho de Veena Das e Deborah Poole (2004: 4), compreendendo que é necessário no trabalho antropológico captar naquilo que é exceção, um caminho para se compreender a realidade. Uma ótica que possa está além lógica unívoca da racionalidade moderna.

Para começo de conversa: Quem são os pregadores do trem?

Quando comecei a acompanhar estes cultos, estava assistindo o documentário Santa Cruz de João Moreira Sales (2000). O filme mostra o surgimento de uma igreja pentecostal na baixada fluminense. A descrição vai desde a implantação da igreja no bairro e como a igreja transformou aquele espaço. Chamou atenção, no final do vídeo, a cena de um ritual de batismo nas águas, em que em seguida, os fiéis batizados seguem ao trabalho missionário nos trens da Central do Brasil.

Em um artigo sobre o filme, Claudia Mesquita (2009: 160-161) mostra como o surgimento da igreja revela-se enquanto elemento de sociabilidade. Refazendo laços sociais, recriando as dinâmicas locais do bairro que antes era desagregado, e após o surgimento da igreja pentecostal encontra novo meio de revigorar as relações sociais do cotidiano daquelas pessoas [iii].

Da mesma forma, podemos dizer que a igreja no trem preenche os espaços vazios de dignidade, ordem, comunidade e relações sociais. São indivíduos que a partir de sua experiência religiosa, reconstroem os laços sociais destituídos de significado mediante a violência e a burocratização da rotina de trabalho.

“… há vozes que falam em retorno do sagrado. É uma idéia com a qual não concordamos, pois ela supõe um eclipse do sagrado que, escondido por algum tempo, volta à cena coberto de fantasias multicores e de gestos novos. O sagrado nem se eclipsou nem adormeceu em sono profundo. Basta pensar no pentecostalismo para a gente se dar conta de que o sagrado esteve sempre presente e assumiu formas diferentes das costumeiras modalidades de expressões religiosas”. (ROLIM, F. C., 1989: 646)

Feuerbach afirma que a religião é o sonho do espírito humano (1988: 31). Aquilo que é tido com ilusão na experiência pentecostal, na verdade, revela elementos que potencializam uma construção simbólica da realidade. Não se trata aqui de pensar o religioso em si, mas a capacidade humana de dar sentido ao real, a toda construção simbólica que ele exerce nos espaços em que freqüenta – seja ele um templo ou um vagão de trem. Não há aqui uma diferenciação entre o sagrado e o profano, mas sim, uma realidade e sua descrição, que pode se dar em diversas instâncias. São dinâmicas que podem ser influenciadas pelas leis do Estado ou pela religiosidade pentecostal. No caso do culto no trem, o que se percebe é que tais relações são atravessadas pela experiência religiosa.

A proibição dos cultos no trem

Em 4 de setembro de 2009, o Ministério Público proibiu por unanimidade de votos as manifestações religiosas nos trens [iv]. O espaço que era um lugar de sociabilidade para parte dos freqüentadores agora estava sob o controle da lei e da ordem. Trata-se de um caso onde o Estado promove formas de gestão da vida e controle das margens. O caso da proibição dos cultos no trem certamente está em outro contexto. Contudo, indo além na leitura, podemos estabelecer algumas aproximações epistemológicas através da concepção de uma antropologia nas margens do Estado.

 

A proposta é considerar a etnografia como uma forma de abordagem que privilegie as particularidades sem, no entanto, abandonar as temáticas universais, como cidadania, democracia, a própria noção de Estado-nação, tão caras para a compreensão do social. Por isso esta etnografia nas margens, que foge do olhar sobre o exótico e  tenta perceber naquilo que excede o alcance da racionalidade do Estado elementos que constituem a própria sociedade (DAS, POOLE, 2004: 4).

Não é preciso ir muito longe para perceber que estas pessoas que participam dos cultos no trem são indivíduos insuficientemente socializados pelas leis, e sofrem diversos tipos de exclusão social conseqüência da incapacidade do poder público de dar conta das demandas locais. São moradores da Baixada Fluminense, trabalham como faxineiros, porteiros, empregadas domésticas que saem de casa às 4h da manhã para cumprir o longo trajeto até a Zona Sul. Passam por verdadeiros obstáculos para chegar ao trabalho, convivendo ainda com atrasos e falhas conseqüências da precariedade do sistema ferroviário da cidade. E diante de tais problemas, ainda sim, não podem reagir contra o poder privado, pois quando o fazem, são publicamente marginalizados pela mídia [v]. Chegando a ponto de em alguns casos, por conta da insatisfação e nervosismo com que reagem aos problemas técnicos e atrasos, de serem referidos como terroristas [vi]. Entram em confronto com questões sobre legibilidade e ilegibilidade do Estado, seus documentos, decretos. Revelam como tudo isso é parte do exercício de controle dos territórios e vidas.

Esta abordagem possui reflexos claros do pensamento foucaultiano (FOUCAULT, 1999), principalmente quando se toca na questão do biopoder e a gestão da vida. O que está me jogo nesta realidade é o aspecto das leis e interdições que são sobrepostas às particularidades do social, e ao mesmo tempo, sua produção de normalidades, criação de categorias elaboradas pelo Estado que reforçam o impacto sobre o controle da vida e a elaboração dos espaços da cidade.

É aquilo que é marginalizado e incluído nas formas de categorização e controle racional. Seguindo esta pista, podemos pensar em uma etnografia do Estado a partir do cotidiano, compreendendo os símbolos de controle e racionalização, políticas reguladoras e todo o aparato burocrático do Estado nos eventos mais cotidianos da cidade. Com isso questionamos: De forma as agências locais se articulam com as leis universais do Estado? Como o fato da proibição dos cultos nos trens pode contribuir para uma leitura antropológica do Estado?

A singularidade presente nestes grupos de pregadores do trem chamou à atenção e que deu origem a esta reflexão. A prática dos cultos no trem traz uma criatividade social capaz de responder criar um mundo novo naquele espaço. Naquele lugar acontece algo que pode ser identificado como uma experiência religiosa que está para além dos limites da racionalidade moderna, criando e recriando novos acordos sociais que nem sempre estão em diálogo com as demandas do poder institucionalizado. Existem rituais da vida comum que não se dobram as análises sistemáticas do jogo da racionalidade moderna. Eles estão cheios de uma sensibilidade coletiva, são provocados por sorrisos, gestos pequenos. Eles não são inúteis e contrários aos grandes movimentos sociais. Em tudo isso o que se pretende e mostrar é a realidade cotidiana do culto no trem como forma de agência e sociabilidade.

Entre o local e o universal na experiência religiosa da cidade

Existe um dinamismo novo que surge com a crise societária da modernidade. Ele foge da racionalidade universalizante do Estado weberiano (DAS e POOLE, 2004:7). A crise do projeto societário da modernidade – a exemplo do holocausto nazista e os genocídios em massas ocorridos no século XX – trazem de volta aquilo que aparentemente esteve ausente na sociedade: O papel do sagrado e suas expressões simbólicas diante da incapacidade da razão moderna em oferecer respostas aos dilemas do ser humano contemporâneo diante da constante fragmentação social da realidade. Sendo assim, pretende-se dizer que toda a manifestação social surge a partir de pequenos nadas que, por sedimentação, constituem um sistema significante. A prática dos pregadores do trem constitui um destes inúmeros fenômenos, e que por sua vez, não pode ser engaiolado em sistemas universalizantes.

Religiosidade e agência local nas margens do Estado

 

Pois bem, o que esses grupos causam na sociedade que leva a intervenção estatal de forma tão incisiva? Segundo José Bittencourt Filho (1996: 32), o pentecostalismo oferece uma espécie de remédio para os problemas oriundos da desigualdade social, em que as demandas populacionais nem sempre são alcançadas pelo Estado. Como as políticas públicas não alcançam a maior parte da sociedade, a solução seria buscada por outros meios, e este seria o que segundo o autor é considerado o remédio amargo.

 

Tal referência à amargura do remédio tem um fundo histórico (Id., Ibid.: 33). Já vem de longa data a estigmatização do pentecostalismo diante do crescimento ocorrido nas últimas décadas do século XX [vii]. Devido aos escândalos ocorridos envolvendo lideranças evangélicas (principalmente pastores) despertou um sentimento de desconfiança na sociedade em relação aos chamados evangélicos [viii]. O relato do Frei Leonardo em um jornal da época revela marcas do estigma imposto aos pentecostais, onde ele afirma que “se tivéssemos (católicos) uma liturgia enculturada, que desse resposta ao povo no dia-a-dia, muitos dos nossos que estão saindo ficariam em casa e não iriam atrás desses grupos” [ix].

É latente neste discurso a exclusão destes grupos por conta de sua suposta ignorância. Diante da pobreza vivida, a falta de resposta natural aos dilemas sociais vividos pelo povo marcado pela ignorância política, teria sido a causa do surgimento de uma religiosidade que torna essas pessoas vulneráveis aos abusos da fé [x].

Claro que devemos considerar os fatos. Estudos já feitos no Brasil apresentam esta relação entre a pobreza das sociedades latino-americanas e o crescimento do pentecostalismo. Segundo Cecília Mariz (1989, 1991), o pentecostalismo está relacionado à superação dos problemas sociais, como alcoolismo e pobreza.

“A situação de algumas pessoas pobres no Brasil (…) pode ser comparada com a situação de um prisioneiro. A carência total de recurso acarreta um grau muito limitado de oportunidade para escolha, ou seja, uma liberdade muito limitada. A similaridade entre um prisioneiro e de uma pessoa extremamente pobre, foi salientada por um habitante de favela no Recife”. (MARIZ, 1994: 20)

Mas não podemos cair na armadilha e olhar para o pentecostalismo como um bloco homogêneo. Consideramos aqui as dinâmicas locais com toda a vitalidade possível de criar e recriar o social à sua maneira.

“O indivíduo tem um valor em si mesmo, por si mesmo, e tudo se torna significativo em função da maneira como ele elabora subjetivamente a realidade à sua volta. É a sua experiência individual que é relevante, atravessando as fronteiras físicas e simbólicas de sua rede de parentes, comunidades, etc.”. (VELHO, 1980: 19)

 

Em contraponto ao discurso que tende a generalizar os pentecostais como ignorantes, sem senso de participação na elaboração dos seus vínculos sociais, é interessante perceber como no trem, o discurso desses pregadores é dotado de uma particularidade que foge à regra do que é dito sobre eles.

“Ei querido, você louva a Deus quando você abre o seu armário, no guarda-roupas, lá  está as melhores vestimentas pra você,  é mole! Você engrandecer ao nome de Deus, quando você abre o teu armário de cozinha e lá está do bom e do melhor, é fácil! Você com dinheiro adorar ao Senhor, é mole! Mas há circunstâncias nas nossas vidas, que o Senhor estreita as coisas, aperta, pra ver se verdadeiramente você adora. Às vezes o nosso Senhor permite, que alguma coisa na sua família aconteça, para ver se verdadeiramente você adora a Deus, pelo que ele é ou pelo que ele pode te dar. Adorar a Deus pelo que ele pode te dar é fácil. Mas adorar a Deus pelo que ele é fica difícil. Ainda mais como Paulo e Silas. E a Bíblia diz que por volta de meia noite eles começam a louvar ao Senhor. Meu Senhor se inclina querendo ver do alto do céu até a terra, e assiste Paulo e Silas louvando ao nome santo do criador, e perto da meia noite houve-se um grande terremoto, o cárcere foi-se aberto, Paulo e Silas foi liberto” [2].

 

É possível ver através da ótica estabelecida a partir da relação pentecostalismo-pobreza, um discurso que de certa forma, é uma forma de lidar com a dor e com o sofrimento. Segundo Birman (1997), o pentecostalismo desenvolveu uma religiosidade que explora, diferentemente do sincretismo católico, uma expécie de policentrismo do mal (Id., Ibid.: 64). De acordo com a autora, os males do cotidiano são vistos como exemplos de que o mal atua nas diversas situações. Contudo, diferentemente do catolicismo brasileiro e as religiosidades sincréticas, para o pentecostalismo, o mal faz parte da ordem cotidiana. Ele não está na categoria de mal absoluto, portanto, pode ser combatido através da agência do indivíduo, que se equilibra nesta balança entre bem e mal através de seu comportamento ético-moral.

“Só Deus sabe como está o teu caráter hoje. Até quando alguém pisa no teu pé a vontade que te dá e a ira sobe e meter a mão na cara! (…) Deus quer trabalhar no teu caráter! (…) Pedro era um homem falso (…) Dentro do vagão você diz que é bom, é crente, mas lá, fora só Deus sabe o que você apronta. (…) Há um Deus que quando ele fala, ele não fere, e quando ele fere, ele sara. A Bíblia diz que ele corrige aquele ao qual ele ama. E se Deus te corrige nesta manhã querido (…)” [3].

Vejamos. Em uma sociedade onde ocorre a ausência do Estado em várias instâncias. Carências que vão do sistema de saúde à assistência social mais básica, como ausência de políticas públicas principalmente nas margens da cidade, o discurso destes pregadores do trem pode ser de certa forma, considerado como agenciador simbólico de solidariedade e construção de valores socialmente aceitos por um determinado segmento da sociedade marginalizada. Onde as políticas preventivas não alcançam estas populações, como o caso da saúde pública na prevenção de problemas sociais como alcoolismo e tabagismo, a experiência religiosa pode ser considerada como uma outra forma de agenciamento diante da ausência do Estado.

“(…) lá em João dezessete que diz assim: Pai, a vida eterna é esta tenho em ti como um único Deus verdadeiro eu sou Jesus Cristo, a quem tu enviaste. (…) o ser humano é quem complica tudo. Ah! Se todos os seres humanos colocassem sua certeza, sua confiança, sua vida somente em Jesus Cristo. Gente o mundo esta desmoronando, o mundo esta sendo corroído como uma pessoa com o vírus do HIV, ele está indo de mal à pior, porque muitos não querem aceitar Jesus como um único Salvador. Jesus diz assim ó: A luz veio a este mundo eu estou, o que ele falou mesmo” [4].

A religiosidade está ligada sim a uma forma de enfrentamento da pobreza, mas também como podemos perceber, a fala destes pregadores traz elementos que transparecem questões que estão ligadas à ausência do Estado na sociedade. Se olharmos para as demandas presentes nas pregações, iremos perceber o Estado como algo indissociável das periferias. Em sua fala eles tocam em questões cotidianas, como aponta Birman (1997), doenças, desempregos, alcoolismo, etc. Através do discurso da luta contra o mal podemos demonstrar a partir das necessidades destes grupos uma chave analítica para questões de ordem pública.

A proibição dos cultos e os dispositivos estatais de controle

Nas margens do Estado percebemos questões que estão no centro. Estes indesejáveis não são apenas um fenômeno religioso. São também um fenômeno que revela a incapacidade do Estado em corresponder aos problemas sociais, que por sua vez os transforma em indesejáveis e contrários à ordem pública. Como o caso relatado a seguir, que narra o diálogo entre um dos pregadores do trem como funcionários da empresa.

“Passei o pandeiro dentro do trem muitas das vezes incomodando a nossa viagem, muitas das vezes querendo ler um jornal, tirar um cochilo, e eles fazendo a acusações dele. Mas eu lhe peço calado, só orando. De repente meus querido, vem um senhor. E aquele senhor diz assim: Olha eu estou aqui ouvindo a acusação de vocês, naquela época CBTU, não sei se vocês se lembram, aqui os trens andava tudo de porta aberta, o trem anda tudo pichado, muitos jovens andavam em cima do trem quantos deles morreu ai em cima do trem né [xi] ? Então, se levantou o senhor e disse assim: – Olha eu vou fazer uma pergunta a vocês e eu quero que vocês me respondam. A gente nem sabia quem era aquele senhor que levantou. Disse assim: É os crentes que anda pichando os trem? Eu quero que vocês me respondam. Eles falaram assim: Não. É o crente que anda segurando as portas do trem? E mais uma vez: Não. É os crentes que ta segurando a porta do trem? Não, eles disseram assim. É os crentes sambando em cima do trem? E eles disseram não. Você sabe que na época da CBTU, quando nego não respeitava um a outro, nego fumava dentro do trem. Olha gente, na época da CBTU, isso aqui tava tudo desorganizado. Quem viaja bastante em pé no trem sabe que eu estou falando então aquele senhor disse assim: É os crentes que anda pichando os trem? E eles disseram não. Aí, disseram assim: Olha o que eu vou fazer então se você se comporta como ele, nós não tinha tanto prejuízo como nós temos” [5].

No caso acima, o relato do pregador relembra e nos mostra que essa repressão aos pentecostais que se consumou com a proibição dos cultos em 2009 já vem de longa data. Impressiona ver como que no discurso dos pregadores, é impossível separar o aspecto sagrado – do combate ao mal – de questões políticas. Aqui podemos ver como eles se articulam dentro da realidade. Ao mesmo tempo em que há uma atribuição aos males da vida referindo-se ao sobrenatural, há também uma visão de que o mal da realidade tem endereço, possui nomes, é feito por pessoas.

O problema da cidade e os mecanismos de controle.

Vem do século XIX o nascimento da tomada da vida pelo poder. Para Foucault (1999), a partir deste século ocorre a estatização do biológico e o direito de “fazer morrer, deixar viver” (Id., Ibid.: 289). Em lugar do poder opressor do tirano, passou a vigorar a partir da lógica da modernidade, manter os humanos vivos e seguros. Cuidar do corpo e ter o controle sobre suas ordens. Surge assim todo um discurso que deseja transformar a cidade em um lugar limpo, um espaço de organização e ao mesmo tempo repleto de hierarquias. A modernidade representou a transição de poder: Do soberano absoluto à micro-instâncias de controle disseminadas pelo social como os poros de uma pele.

“… para seguir Jesus, você que é jovem ai meu amigo, sexo fora do casamento é pecado. Tem que esperar até a hora de você casa. Jesus não é mole não, viu? Pra seguir Jesus, se fuma maconha, vai larga a maconha! Cheira cocaína? Vai largando essa praga por que isto destrói o mundo de Deus? Se viciado no álcool? Vai larga o álcool! Porque Jesus meu amigo é duro. Venha adorar somente o Senhor. Vem! Larga essa judaria. Vem! Larga o ódio, a mágoa, pense você que com o Rei, você tem que parar com isso. Por isso que muitos não querem aceitar Jesus. Jesus é ruim porque com Jesus eu não vou poder fazer isso. Ah! Porque meu amigo? Jesus é a coisa mais linda do mundo, e é Jesus meu amigo quem luta com Diabo para você não aceitar Jesus, qualquer um aqui aceitou Jesus como Salvador, mas ao pisa na cabeça do Diabo (…) é o único povo que tem autoridade de colocar Satanás de joelho e nenhum outro povo que tem autoridade e poder de Deus para colocar o Diabo de joelho, e você dizer que ele é um derrotado  […] É o único povo que tem o poder de orar, porque a oração rasga e Deus desce com a resposta através de nossas orações. Pessoas estão sendo curadas do câncer, casamento está sendo restaurado, obras de macumba e bruxaria está sendo desfeito, jovens estão sendo libertos das drogas, traficante esta largando o tráfico, prostituta esta largando a prostituição, o homem esta largando o homossexualismo, que isso é uma praga, porque isso é um pecado diante de Deus, viu? Deus esta fazendo maravilhas. Senhor eu entrego sua filha em tuas mãos e lhe de todo o espírito de sabedoria, porque o Senhor esta fazendo maravilhas em nome de Deus” [6].

Temos questões distintas imbricadas em um único discurso. Ao mesmo tempo há a presença da atmosfera religiosa permeada pelo imaginário da luta contra o mal, e ao mesmo tempo, podemos perceber preocupações que revelam questões que estão na pauta do dia nos debates da agenda do Estado. Se por um lado a droga e o homossexualismo são demonizados, por outro, temos aspectos que remetem à capacidade de comunicação que estes indivíduos conseguem alcançar, em um setor da sociedade que não tem acesso aos meios de comunicação por onde são viabilizadas informações sobre saúde, educação, segurança etc. Tais demandas estão presentes na dinâmica do Estado moderno e sua proposta de controle e ordenação do social. Porque então proibir os cultos?

Creio que não cabe a este trabalho tal resposta. Está claro que há questões envolvendo a questão do pluralismo cultural presente e o papel do Estado em querer gerir forças que se confrontam. É intrigante perceber como que no discurso pentecostal do trem aparecem as lacunas deixadas pelo poder público.

Um outro aspecto que podemos destacar é como se confrontam diferentes formas de utilização do espaço. Segundo Foucault (1986), vivemos na era da simultaneidade do espaço. É do século XIX a preocupação com tempo e o acúmulo. Atualmente vivemos a era do espaço relacionado ao dinamismo social, das mudanças e confrontos de idéias até a eminência de novas representações. O autor apresenta uma abordagem do social que permite uma interpretação plural da sociedade, levando em conta atores e fenômenos que anteriormente seriam descartados devido ao seu caráter marginal e inconstante.

O trem simboliza este tipo de apropriação do espaço. O que seria uma forma de socialidade periférica, revela-se como espaço de simultaneidade onde diversas experiências com a realidade coincidem. Houve uma quebra na normatização e fixidez dos espaços, e a cidade por excelência é esse lugar, onde diferentes formas de agenciamentos se entrecruzam de forma plural.

Sendo assim, não é possível qualquer tipo de dicotomia da realidade no instante em que vemos questões referentes ao Estado. Elas estão presentes de maneiras distintas e se relacionando de forma dinâmica no mesmo espaço. O trem representa essa transitoriedade e sobreposição dos diferentes agentes sociais. São essas heterotopias, onde se torna impossível definir quem é o outro. Há uma presença sincrônica de diferentes. O caso dos pregadores do trem pode ser uma amostra deste fenômeno, pois simultaneamente eles se localizam nas margens trazendo em seu discurso aspectos do social que são centrais. É como se a representação fosse permanentemente contínua.

Conclusão

O intuito deste trabalho foi mostrar como a antropologia pode proporcionar novas formas de compreensão da realidade. O caso dos pregadores do trem nos traz o exemplo do potencial criativo das margens. Ali temos a reinvenção das fronteiras sociais que são marcadas através da experiência religiosa por experiências de sobrevivência. Eles revelam estratégias de resistência que precisam se pensadas etnograficamente.

São espaços periféricos que se revelam centrais para pensar de forma antropológica o papel do Estado. Estaria aa Antropologia apenas preocupada com tudo aqui que é exótico e fora do Estado? Quando se diz que antropologia não problematiza o Estado, ela define seu objeto como aquilo que não é Estado. Fica seu objeto relegado a tudo que é irracional.

Podemos perceber na prática dos cultos no trem a centralidade de questões fundamentais para pensarmos aspectos do Estado moderno como a democracia, cidadania, e problemas referentes ao mesmo como a desigualdade social e a incapacidade do poder público de dar conta das demandas locais. A religiosidade destes grupos, de forma silenciosa, traz à superfície tais questionamentos, possibilitando novas formas de aproximação da realidade.

Bibliografia

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DAS, Veena, POOLE, Deborah (eds.) Anthropology in the margins of the State. New Delhi, Oxford University Press. 2004.
DAS, Veena. Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 1999, vol.14, n.40, pp. 31-42. ISSN 0102-6909.  http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091999000200003. [Acessado em 09/01/2012].
FEUERBACH, Ludwig., A essência do cristianismo. Campinas, SP: Papirus, 1988
FOUCAULT, M., De outros espaços, in: http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/obra/outros.prn.pdf . [Acessado em  11/01/2012]
______________., Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: 1999.
MARIZ, Cecília . Alcoolismo, Gênero e Pentecostalismo. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 16, n. 03, p. 80-93, 1994.
MARIZ, Cecília . Coping With Poverty: Pentecostals And Base Communities In Brazil. Philadelphia , USA: Temple University Press, 1994. 224 p.
MESQUITA, Cláudia. Viramundo (1965) e Santa Cruz (2000): Representações fílmicas do pentecostalismo em dois tempos. In.: ALMEIDA, Ronaldo; MAFRA, Clara (org.), Religiões e cidades:Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2009, pp.  151-164.
ROLIM, F. C., A face conservadora do pentecostalismo, in: Religião e Sociedade, ano 83, nov/dez, 1989. n.o 6, p. 646.

[1] Gravado em 28/11/2007.

[2] Gravado em 28/11/2007.

[3] Gravado em 06/11/2007.

[4] Gravado em 15/12/2008.

[5] Gravado em 15/12/2008.

[6] Gravado em 15/12/2008.


[i] Os dados deste trabalho são fruto de uma pesquisa anterior. A pesquisa de campo foi realizada entre 2007 e 2009, onde estive acompanhando os cultos, que sempre aconteciam no último vagão do Ramal Gramacho/Saracuruna pela manhã. Os registros foram feitos através de gravações em áudio e depois transcritas, além de observação e anotações manuais.

[ii] Cf. Mendonça (1995) e Filho (1996). Os estudiosos do protestantismo brasileiro em geral classificam o protestantismo em históricos: oriundos das missões do século XIX, pentecostais tradicionais: desde a fundação da Assembleia de Deus; ainda, temos o pentecostalismo autônimo, que seria um campo sincrético , cf. MENDONÇA, A. G., PRÓCORO, V. F. Introdução ao Protestantismo no Brasil. Traz uma análise da inserção do protestantismo, desde sua origem com o chamado protestantismo de missão dos Estado Unidos, até ó surgimento do pentecostalismo clássico e as igrejas neopentecostais. A literatura sobre o estudo do Pentecostalismo, afirma que a configuração do panorama religioso brasileiro mostra que o protestantismo chamou atenção dos setores burgueses da cidade, seguindo bem a perspectiva weberiana, associando a modernidade burguesa que se sustentou com o pensamento liberal dos protestantes do século XIX; por outro lado, o Catolicismo deu continuidade a sua aliança histórica com os setores agrários, em particular com a elite). cafeicultora. Para estes, o pentecostalismo fincou suas bases, herdando dos primeiros missionários a prática dos cultos nos lares, o anticatolicismo e aquilo que Rubem Alves chamou de Protestantismo da Reta Doutrina. Cf. ROLIM, F. C., Pentecostais no Brasil: Uma interpretação sócio-religiosa, p. 62; ver também ALVES, R., Protestantismo e Repressão; MENDONÇA, A. G., O Celeste Porvir: A Inserção do Protestantismo no Brasil. Cf. tb. a relação entre o protestantismo e a modernidade, ALVES, R. Protestantismo e Repressão, p. 38. “O protestantismo se entende como o espírito da liberdade, da democracia, da modernidade e do progresso. O Catolicismo, por oposição, é o espírito que teme a liberdade e que, como conseqüência, se inclina sempre para soluções totalitárias e se opõe à modernidade. Num passado já vencido pela luz do evangelho jaz, morto, um negro período dominado pela superstição, intolerância, ignorância e escravidão da consciência, à mercê de uma Igreja totalitária, época sombria e triste, iluminada apenas pelas fogueiras da Inquisição. Tal era ainda subsiste hoje entre nós, como um morto entre vivos – fóssil de um tempo soterrado pelo passado: a Igreja Católica. Se perguntarmos à história: “De que lado estás? Qual o teu destino?” Ela responderá: “O Catolicismo é o passado de onde venho. O Protestantismo é o futuro para onde caminho”.

[iii] Cf. “Eu diria que ela se sustenta, em termos de argumento, no movimento ou no crescendo, dado pelo conteúdo de mudança dos indivíduos, do grupo e do bairro onde a igreja se implanta, introduzindo progressivamente e desenvolvido por cada grande segmento cronológico. Esse movimento se dá em direção a um maior grau de dignidade, e todas as mudanças que observamos no filme – na vida dos convertidos, da Casa de Oração ou da vizinhança – expressam essa dignidade propiciada pela conversão. É como se a igreja preenchesse, aos poucos, um espaço vazio, um grau zero de dignidade, de ordem, de comunidade e de relações sociais positivas”. (MESQUITA, Cláudia. Viramundo (1965) e Santa Cruz (2000): Representações fílmicas do pentecostalismo em dois tempos. In.: ALMEIDA, Ronaldo; MAFRA, Clara (org.), Religiões e cidades:Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2009, pp.  151-164.

[v] No final de 2009, problemas causaram fechamento de estações da Supervia. Os usuários causaram protestos, o que gerou tumulto e reações envolvendo a polícia (Jornal do Brasil, Cinco feridos em tumulto, agora na Central do Brasil. Sexta-feria, 9 de outubro de 2009). Outros protestos ocorreram devido ao problemas no sistema de refrigeração dos trens (Jornal O Extra, quinta-feira, 15 de outubro de 2009).

[vi] Jornal O Dia, “Terrorismo nos trens”, sábado 10 de outubro de 2009.

[vii] Cf. FERNANDES, Rubem César (coord.) … (et. Al.). Novo nascimento: Os evangélicos em casa, na igreja e na política. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

[viii] Cf. Folha de São Paulo, Celam denuncia comércio da fé, 5 de novembro de 1990. Reportagem mostra a preocupação de bispos que se reuniram para discutir o crescimento das seitas na América Latina. Em outra reportagem do mesmo jornal (31 de maio de 1990), mostra a preocupação das igrejas cristãs com o crescimento das seitas, referindo-se ao tipo de religiosidade que as novas igrejas estão oferecendo ao povo.

[ix] Cf. Idem.

[x] Cf. Matéria do Jornal do Brasil, Uma guerra santa nas favelas, 30 de julho de 1990.

[xi] Sobre o cotidiano dos trens, é interessante este artigo sobre violência e a repressão antes da privatização da linha ferra. Cf. PIRES, Leni. “Deus ajuda a quem cedo madruga?” Trabalho, informalidade

e direitos civis nos trens da Central do Brasil.in.: GROSSI, Miriam Pillar; HEILBORN, Maria Luiza; MACHADO, Lia Zanota (Organizadoras). Antropologia e Direitos Humanos. Blumenau: Nova Letra, 2006     pp. 185-242.



Violência, religião e psicanálise: uma leitura nos trilhos da Central do Brasil.
fevereiro 22, 2012, 9:06 pm
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“Enquanto todo mundo espera a cura do mal,

E a loucura finge que isso tudo é normal,

Eu finjo ter paciência”. (Lenine, Paciência).

O cotidiano e a violência no trem

O trem vai e vêm todos os dias na Central do Brasil. Enquanto uns chegam para ficar outros partem para nunca mais voltar. Estranho é que passamos pelo trem e por todo o caldo existencial de vidas que cruzam as estações, e não percebemos os tipos de relações que se estabelecem entre aquelas estruturas de ferro, aço, e desespero. Ali onde tudo tem gosto de pressa e angústia, onde falta cidadania e sobra desigualdade, podemos ter a sensação de que ali está toda a engrenagem que move a cidade. É um lugar onde a vida não para e por isso todos estão correndo. Não há tempo para ter paciência.

Poderíamos dizer que a Central do Brasil é efetivamente um lugar de passagem. Um espaço onde nada permanece e tudo é passageiro. Quando o locutor anuncia no alto-falante a partida da composição, uma histeria toma conta das pessoas com olhares religiosos fitos nas modernas telas de LCD que marcam o horário e a plataforma da próxima partida. Quando esta é anunciada, em uma loucura coletiva, aquela massa parte correndo aos gritos em uma luta para conseguir pegar um dos poucos bancos e ir descansando para casa. Os que não conseguem correr, por cansaço ou pela idade, são aqueles muitos que irão em pé, em uma viagem de 40 a 60 min até Gramacho ou Saracuruna. As pessoas que transitam diariamente por este lugar convivem com uma realidade onde violência e cotidiano são faces da mesma moeda.

A realidade descrita acima está inserida em um contexto de relações sócio-históricas que surgem a partir da segunda metade do século XX[1]. O Brasil pós-1964 é marcadamente uma sociedade onde a exclusão social caminha de mãos dadas com o crescimento econômico, baseado no arrocho salarial e a intensificação da exploração do trabalho, oprimindo as manifestações políticas e privilegiando os setores de alta renda[2]. Não é difícil perceber hoje as conseqüências do recente passado brasileiro nos semblantes angustiados e apressados nos trens da Central do Brasil. Estamos aqui falando de uma violência silenciosa, que tem marcado a vida de muitos cidadãos brasileiros que saem às 5h da manhã para chegar ao trabalho. A nossa sociedade industrial é capaz de gerar os anestésicos necessários capazes de nos livrar do fardo de ter que encarar a realidade de “cara limpa” [3]. Mas isso é para alguns poucos cidadãos. Os outros vão de trem, e a realidade deles é feita de cores nuas e cruas.

A história social no leva a perceber as estruturas psíquicas que permeiam o cotidiano do trem. Trata-se de uma estrutura extremamente violenta, de exclusão e desesperança[4]. Todos os dias o trem corta a cidade em uma liturgia da miséria, como um lugar de onde se observar à cidade como um corpo, sendo o muro da linha férrea a pele que separa o interior do exterior. Ao chegar na Central do Brasil podemos vemos um exterior que apresenta ordem e beleza, com as vias urbanas, os prédios, e o trânsito controlado pelos semáforos e os guardas. Para quem vai de trem a sensação é outra. A paisagem muda, e o que se vê são os barracos à beira do precipício no morro da Providência revelando a precariedade da vida. Além dos ambulantes e pedintes que entram anunciando seus produtos e contando suas misérias. No trem encontramos a prova material do preço pago pelo progresso e a modernização da nossa sociedade[5]. Em que tal estrutura pode interferir na condição existencial das pessoas que diariamente viajam da baixada fluminense à Central do Brasil? Na perspectiva da psicanálise podemos citar Eric Fromm que vai dizer:

“Não temos uma existência caracterizada por fraternidade (…) Mas um estado semelhante à esquizofrenia, em que ficou perdido o contato com a realidade interior e a vida intelectual está dissociada da afetiva”.(FROMM, 1956:03).

Neste sentido a realidade do trem aproxima as pessoas da exclusão e do exílio. Ao aproximar da exclusão, estreitando a distância entre a casa e o trabalho, o trem funciona como uma estrutura violenta e provocadora de um exílio, onde o indivíduo deixa sua casa para vender sua força de trabalho. Em uma existência marcada pela violência da exploração do trabalho e uma vida de extrema dificuldade vamos encontrar um ambiente fértil para o diálogo entre violência, religião e psicanálise.

E aqui iremos analisar um fenômeno pouco estudado e discutido pelas ciências sociais hoje: A igreja sobre os trilhos. Estamos falando de um grupo inter-denominacional, que todos os dias realizam um culto evangelístico que começa na estação de partida (Gramacho ou Saracuruna) e termina na Central do Brasil. Fizemos um levantamento durante algumas viagens, observando seu trabalho, analisando o discurso e a forma como se apresentam. Em linhas gerais podemos destacar que são pessoas de diferentes denominações evangélicas, oriundas de baixada, que pegam o trem diariamente para o trabalho. Eles então aproveitam a viagem para “fazer a obra de Deus”. Tudo se passa como em uma igreja. Eles vão chegando se ajuntando em um determinado vagão (em geral o primeiro) e daí seguem-se falas intercalada com músicas e no final (chegando na estação de São Cristóvão) um pregador traz “a palavra”. Ao término da viagem, eles convidam as pessoas para uma oração final “(…)que não paga nada, é de graça(…)”. Interessante notar em todas as falas observadas, ao se referir ao grupo presente, eles fazem uma saudação “(…) saúdo a igreja com a gloriosa paz do Senhor(…)”. Em nenhum momento ocorre alusão a denominação e nem mesmo um convite para ir a uma igreja. A igreja está presente no trem.

São muitos os autores e obras clássicas que analisam o fenômeno religioso que poderíamos citar aqui[6]. Contudo iremos delimitar nossa análise na perspectiva da psicanálise, analisando o ponto de vista de Freud e Jung, e na leitura que René Girard faz sobre a violência e o sagrado.

“Acreditam alguns que encontram a resposta num retorno à religião, não como um ato de fé, mas apenas para fugir a duvidas atrozes; não se trata de uma decisão inspirada pela devoção, mas pela necessidade de segurança”.(idem: ibidem: 05)

Este texto de Fromm traduz a perspectiva freudiana a respeito do fenômeno religioso[7]. Esta é uma leitura muito comum hoje, não apenas nos meios acadêmicos, mas também, no senso comum, quando criticamos os movimentos religiosos, e especificamente o neopentecostalismo. Pessoas sofrendo vários tipos de violência, contanto ainda com a incapacidade do Estado para garantir seus direitos constitucionais, apelam para a religiosidade como alternativa para encarar a realidade[8]. Com isso segundo Freud a religião é a ilusão oferecida como forma de responder as questões da vida. Diante do sofrimento o que a nossa sociedade oferece como resposta? O que dizer a uma mãe que sai de madrugada para pegar o trem, e enquanto está no trabalho o filho se perde no tráfico?

Ao se deparar com a falta de respostas a religião é uma âncora infantilizante. Sem menosprezar o legado da psicanálise freudiana, devemos ter em mente que o autor escreve sua obra no final do século XIX, portanto, distante no tempo e no espaço, em uma época em que a religião – em particular o cristianismo ocidental – está sofrendo as mais duras críticas com Nietzsche e Marx.

Porém as ciências sociais podem nos oferecer um outro caminho para ler as entrelinhas das linhas do trem, e quais as relações existentes por traz do som da ferrovia. Além do cricrilar de ferragens podemos ouvir gemidos, suspiros, e por detrás dos gritos e da glossolalia evangélica dos vagões, encontramos mais do que alienação e fuga da realidade. A priori podemos nos valer da afirmação de Peter Berger:

“Toda a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo. A religião ocupa um lugar destacado nesse empreendimento” (…) “No processo da construção de um mundo, o homem, pela sua própria atividade, especializa os seus impulsos e provê-se a si mesmo de estabilidade. Biologicamente privado de um mundo do homem, constrói um mundo humano. Esse mundo, naturalmente, é a cultura”.(idem, ibidem: 15-19).

Se o mundo é uma construção humana podemos dizer que a igreja do trem é uma forma de recriar um novo mundo rico em símbolos que vai muito além da alienação da realidade. Não se trata de questionar a existência de Deus, ou simplesmente dar forma ao fenômeno religioso, mas sim, analisar as vivências ali existentes, isentos de toda a preocupação com os dogmas, atentando para as motivações reais e presentes[9].

Religião e Psicanálise: uma perspectiva junguiana.

 

Para Jung a religião é a atitude do indivíduo em relação ao sagrado enquanto processo psíquico[10]. Para ele a religiosidade humana é algo genuíno e intrínseco ao ser humano[11]. Na perspectiva junguiana, todas as formas de simbolizar a realidade são manifestações psíquicas simbolizadas na religião. Neste sentido o século XX foi tão mitológico quanto a antiguidade clássica. Trocamos os “mitos religiosos” por outros mitos que são políticos, culturais, econômicos e ideológicos. Não há distinção entre a religiosidade presente na fé política dos militantes do Partido Comunista quando aos seguidores de Elvis Presley[12].

Jung usa a palavra religião no sentido religio (re e ligare), tornar a ligar. Diante daquilo que não se pode explicar, o ser humano psiquicamente cria um mundo simbólico que o religa a realidade através da experiência mística. Podemos neste ponto dizer que a experiência do culto no trem é uma forma de religar-se ao mundo diante de uma realidade onde tudo é violência e desligamento.

“Em razão disso, não podemos absolutizar nosso paradigma moderno, científico-experimental e técnico. Este não desnuda todas as dimensões da realidade, apenas aquelas que entram no diálogo experimental com a natureza. (…) Há também outras formas de diálogo, pois as várias culturas e os vários tempos históricos desenvolveram mil formas de conhecimento, seja pelos sonhos, pela intuição, pelos mitos e símbolos, pela reflexão religiosa, e outras mais.” (BOFF, p.15)

Sendo assim podemos lançar um olhar mais rico para o fenômeno religioso, onde o que iremos perceber a partir da observação de um pequeno grupo, uma linguagem que pretende recriar a realidade ao redor, onde os crentes assumem seu papel de agentes históricos, renegados pelo Estado e a sociedade.

Religião e violência

A relação existente entre a violência e a religião na perspectiva de Jung, onde a religião é uma estrutura psíquica do ser humano, repleta de simbolismos e da capacidade de recriar as ligações com o sagrado. Para falar sobre a relação entre violência e religião iremos fazer uma análise a partir da obra de René Girard[13] sobre o desejo mimético como origem da violência nas diversas sociedades. Ele parte da idéia freudiana de que o desejo do filho em competir com o Pai está presente nas relações de competição e superação do outro na sociedade. Desde a horda primitiva até o homem contemporâneo, todos buscamos na tentativa de ser superior e diferente do outro, uma reparação desse desejo mimético que trazemos desde a infância. As religiões surgem como elemento pacificador de tal desejo que nunca será satisfeito.

“(…) O religioso nada mais é do que esse imenso esforço para manter a paz. O sagrado é a violência, mas se o religioso adora a violência, é sempre enquanto esta se torna portadora da paz: o religioso é todo orientado para a paz, mas os meios dessa paz nunca dispensam a violência sacrificial (…)”. (GIRARD, 1980, p.28).

O cristianismo oferece justamente esta perspectiva sacrificial e pacificadora. Temos um Deus que é santo e está com raiva dos seres humanos porque estes desejaram se tornar semelhantes a Deus[14]. O sacrifício vicário seria a forma de aplacar a ira desse Deus e manter a paz dentre os homens. Aqui a religião aparece como um instrumento justificador da violência como meio de produzir a paz. Só há paz com sacrifício de vida. É a idéia do bode-expiatório presente até hoje, não apenas na religião cristã, mas na ética que rege a sociedade, onde sempre precisamos de um culpado para que a democracia e a vida política do Estado possa sobreviver.

“(…) Deus venceu o diabo e venceu a morte (…)” [Depoimento durante o culto no trem, dia 06/11/07]

Nesta fala podemos perceber a forma pela qual acontece a apropriação da mensagem sagrada no cotidiano. A mensagem bíblica é repleta de tragédias que são tomadas como espelho dentro da lógica sacrificial de Girard. Em todo o tempo a mensagem procura enfatizar o sacrifício de Deus na cruz, para resgatar o homem do pecado, ou seja, uma passagem da morte para a vida. Simbolicamente, passar da morte para a vida, significa sair da vida de miséria, de uma existência sem sentido para fazer parte de um outro mundo. E toda esta dinâmica é acompanhada de uma promessa futura, onde a negação deste mundo pecador gera no futuro uma recompensa.

(…) Ele [Deus] diz que nos vai preparar um lugar (…) [Depoimento durante o culto no trem, dia 06/11/07]

Em uma sociedade individualista e violenta esta linguagem traz propostas éticas e morais, que além do legalismo, oferecem princípios para a vida. Falar de princípios éticos em um trem lotado cheio de pessoas que são violentadas diariamente por uma sociedade capitalista, onde suas relações de trabalho muitas vezes acontecem a despeito de qualquer princípio, este discurso acaba funcionando como uma forma de apaziguamento da violência.

“(…) O religioso nada mais é do que esse imenso esforço para manter a paz. O sagrado é a violência, mas se o religioso adora a violência, é sempre enquanto esta se torna portadora da paz: o religioso é todo orientado para a paz, mas os meios dessa paz nunca dispensam a violência sacrificial (…)”. (GIRARD, 1980:28).

“(…) Só Deus sabe como está o teu caráter hoje até quando alguém pisa no teu pé, a vontade que te dá e a ira sobe e meter a mão na cara… Deus quer trabalhar no teu caráter! … Pedro era um homem falso… Dentro do vagão você diz que é bom, é crente, mas lá fora só Deus sabe o que você apronta. (…) Há um Deus que quando ele fala, ele não fere, e quando ele fere, ele sara, a Bíblia diz que ele corrige aquele ao qual ele ama. E se Deus te corrige nesta manhã (…)”[Depoimento durante o culto no trem, dia 06/11/07]

Ou seja, a mensagem de amor e abnegação do mundo, onde para fazer parte do grupo é preciso se abster de práticas imorais e ter uma conduta ética isenta as pessoas de questionar a ordem estabelecida da sociedade. Não importa se só se consegue uma grana a mais no orçamento passando a perna no outro, pois caso o contrário o salário não vai chegar ao fim do mês. Mesmo sofrendo a violência da exclusão capitalista, a dinâmica desta religiosidade acontece por meio de uma relação sacrificial, como é dito“(…) o meu Senhor querido ele se entregou em uma morte horrenda para provar que ainda há jeito para tua vida (…)”[Depoimento durante o culto no trem, dia 06/11/07].

Não se trata de uma questão de consciência sobre a exclusão, ou uma luta por igualdade social, mas sim de saber que sofremos injustiças neste mundo, mas Deus sofreu na cruz por mim, sendo assim, eu aceito o sacrifício me abstenho do pecado – mesmo que eu não tenha culpa objetiva – e deposito a minha fé em um Deus que irá prover as minhas necessidades. Este próprio sujeito – Deus – se torna um substituto dos bens de consumo que estas pessoas não pode comprar. E podemos perceber que em termos estéticos pregadores do trem são pessoas que não ligam muito para roupas, assumindo uma postura um pouco eremita em alguns casos.

Falamos de um outro mundo e mais que uma fuga da realidade, o fenômeno religioso dos pregadores no trem revela uma engrenagem sacrificial que permeia as nossas relações sociais. Eu me sacrifico e levo uma vida moralmente correta, sem vícios, longe das coisas do mundo – do mundo não-religioso, ou seja, pecador e imoral – pois fazendo este sacrifício eu terei um tesouro maior que é Deus. Além da lógica sacrificial presente na teologia cristã, onde a cruz serve como fato que aplaca a ira de um Deus raivoso, que deseja castigar os seres humanos pelo pecado original, este que por sua vez, traduz o desejo mimético onde simbolicamente o homem pecou, desejando ser como seu Pai Criador (Deus). Ao perguntar em uma entrevista a um dos participantes do grupo sobre alguma experiência de violência, descobrimos uma outra face desta relação entre violência e religião.

“(…) Muitos agridem a gente varão, uns verbalmente, outros carnalmente… por exemplo, a mim o cara me jogou no chão, o cara grandão me jogou no chão e eu pude levantar. Mas a bíblia diz que tudo isso é por amor de Cristo… e por aumentar a iniqüidade o amor de muitos esfriaria, quando acaba o amor, entendeu, entra a violência (…)”[Depoimento durante o culto no trem, dia 06/11/07]

Não é apenas uma relação de sublimação do desejo, mas se trata aqui de um conflito entre dois mundos. Um deles é o mundo da violência da exclusão social. Outro o mundo que surge a partir da ausência a estas questões de sobrevivência na exclusão, gerando um conflito entre ambos, que é aplacado pela lógica do bode expiatório. Sofrer a agressão gera uma resposta que deveria ser outra agressão. Mas a religião oferece o bode expiatório, ou seja, eu sofro em nome de algo maior, do qual eu não dou conta, é um mistério que me dá garantias para que eu sublime o meu desejo de responder a violência com mais violência.

“O sacrifício é um instrumento na luta contra a violência. (…) Ele faz convergir às tendências agressivas para as vítimas reais ou ideais, animadas ou inanimadas, mas sempre não susceptíveis de serem vingadas, sempre uniformemente neutras e estéreis no plano da vingança. O sacrifício oferece ao apetite da violência, que a vontade ascética não consegue saciar, um alívio sem dúvida momentâneo, mas indefinidamente renovável, cuja eficácia é tão sobejamente reconhecida que não podemos deixar de leva-la em conta. O sacrifício impede o desenvolvimento dos germes de violência, auxiliando os homens no controle da vingança.” (GIRARD, 1980:31-32)

Não conseguimos esgotar o assunto pela riqueza de temas que podem ser trabalhados. Não citamos, por exemplo, a possível história da formação destes grupos, não uma narrativa factual, mas um mapeamento da origem social deste grupo, comumente chamado de neopentecostais. Caberia um outro estudo e um trabalho de pesquisa mais extenso. Contudo aqui a nossa intenção foi apontar uma leitura através de um estudo de caso, onde pudéssemos ir além dos rótulos pejorativos (alienação, loucura) que demonstram uma violência das pessoas em relação a este grupo. Tentamos estabelecer o quanto estas relações são permeadas por atitudes de violência e como esta violência acontece na linguagem e na corporeidade.

Bibliografia:

BOFF, L. BETTO, Frei. Mística e Espiritualidade.
FONTE, Virgínia. Capitalismo, Exclusões e Inclusão Forçada. Tempo, Rio de Janeiro, vol. II, nº.3, 1996, p. 34-58.
ÁVILA, Antônio. Para conhecer a psicologia da religião. São Paulo: Loyola, 2007.
BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
FREUD, O mal-estar na civilização, RJ: Imago, 1974.
FROMM, Eric. Psicanálise e religião. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina e Psicologia, 1956.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1980.
JUNG, ____________________ ?
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967.
MENDONÇA, Sônia Regina de; FONTES, Virgínia, História do Brasil Recente: 1964-1992. Editora Ática.
OLIVEIRA, Francisco, Ditadura militar e crescimento econômico: a redundância autoritária, in, 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.

Depoimentos coletados no dia 06 de novembro de 2007, durante a viagem no trem da Penha até a Central do Brasil, gravados em áudio. Colaboraram o presbítero Jorge e o irmão Felipe com participação em entrevista.


[1] Francisco de Oliveira faz um panorama interessante sobre o período, “O golpe de 1964 é o produto dessa transformação instável. O tripé político-social inicial, burguesia nacional, proletariado, Estado, se desestabiliza com a entrada dos capitais estrangeiros no setor de bens duráveis de consumo, novas classes médias urbanas passam a ser um ator central, (…) Faltando previsibilidade na política, a economia patina. Crise produzida pelo espantoso crescimento econômico e não pela sua ausência.”(OLIVEIRA, Francisco, Ditadura militar e crescimento econômico: a redundância autoritária, in, 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras,2004, p. 222)

[2] Ver também para este tema MENDONÇA, Sônia Regina de; FONTES, Virgínia, História do Brasil Recente: 1964-1992. Editora Ática, o capítulo 3 “As bases do milagre”, traz uma análise geral sobre a relação entre o progresso econômico e as condições sociais no Brasil pós-64.

[3] “Se os indivíduos estão satisfeitos a ponto de se sentirem felizes com as mercadorias e os serviços que lhes são entregues pela administração, por que deveriam eles insistir em instituições diferentes para a produção diferentes de mercadorias e serviços diferentes?” MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967, p.63.

[4] Sobre exclusão social destacamos uma definição a seguir: (…) Características constitutivas da expansão do capitalismo, a impossibilidade de assegurar a própria subsistência ou o desemprego constituiriam uma exclusão? Seguindo o raciocínio de Marx, a resposta deve ser nuançada. O processo de mercantilização da força de trabalho corresponde de fato a uma exclusão das condições anteriores de existência, exemplificado por Marx em artigo clássico dedicado à transformação do consumo tradicional de lenha dos bosques comunais em roubo, privando os camponeses de fonte tradicional de abastecimento e desqualificando um ato consagrado pelo costume 6. Porém, corresponde igualmente a uma inclusão, uma vez que essa mão-de-obra deveria estar apta a entrar no mercado de trabalho. Inclusão não idílica, nem resultado do desejo individual de cada trabalhador, mas que constituiria o cerne central da produção capitalista. Expropriados da capacidade autônoma de sobrevivência e de parte do valor produzido por seu trabalho, mas incluídos em um processo mercantil e industrial que produzirá, ainda segundo Marx, as formas de pensamento para assegurar sua continuidade 7. Uma verdadeira sociabilidade adequada ao sistema capitalista por-se-ia em marcha, controlando e disciplinando tanto a força de trabalho efetivamente empregada quanto aqueles que constituíssem suas bordas, enquanto exército industrial de reserva.(…) FONTE, Virgínia. Capitalismo, Exclusões e Inclusão Forçada. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 2, n°. 3, 1996, p. 34-58.

[5] Para nossa análise da sociedade de consumo e suas implicações na exclusão e na violência nos baseamos na obra de Fromm, como o trecho a seguir: “Jamais, anteriormente havia o homem atingido, como hoje, a realização das suas esperanças mais queridas. As descobertas científicas e os progressos técnicos permitem vislumbrar o dia em que todos terão o que comer, em que a raça humana formará uma comunidade unificada e não mais viverá como entidades separadas”, FROMM, Eric. Psicanálise e religião. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina e Psicologia, 1956, p.3.

[6] Para o protestantismo brasileiro podemos destacar MENDONÇA, Antônio Gouvêa, PRÓCORO, Velasques Filho. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2002. Traz uma análise da inserção do protestantismo no Brasil, desde sua origem no chamado protestantismo de missão dos Estado Unidos, até ó surgimento do pentecostalismo clássico, e das igrejas neopentecostais.

[7] Freud vai analisar a necessidade religiosa como fruto de uma carência paterna, sendo a religião um sentimento infantil de incapacidade de lidar com a realidade da vida: “Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai. (…) A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por trás disso, mas, presentemente, ainda está envolto em obscuridade”, FREUD, O mal-estar na civilização, RJ: Imago, 1974, p.90.

[8] Para Freud “A religião tem sua origem no sentimento de incapacidade do homem, quando se vê confrontado com as potências exteriores, provindas da natureza, e com o seu próprio dinamismo instintivo”. (FROMM, p. 11)

[9] Para psicologia da religião, a obra de ÁVILA, Antônio. Para conhecer a psicologia da religião. São Paulo: Loyola, 2007, p. 18, diz “A psicologia da religião não reduz seu papel a uma mera descrição do fato religioso, mas deve fazer um juízo de valor sobre ele. Deve avaliar o comportamento humano compreendendo as vivências religiosas e discernir seu nível de maturidade, sanidade, etc.”.

[10] JUNG (?)

[11] “A divergência entre Jung e Freud, neste assunto, é absoluta. Para Jung a religião apresenta-se como um fenômeno genuíno; para Freud é um derivado do complexo paterno e uma das sublimações possíveis do instinto sexual”. (p.141)

[12] “Uma série de deuses e deusas vem desfilando ante nossos olhos. Primeiro as estrelas de cinema. ‘Essas estrelas são quase deuses e deusas e a mais perfeita dentre elas, Greta Garbo, recebeu a denominação de divina. Encarnam grandes arquétipos elementares: a paixão do amor’ (…)”. (p.144)

[13] René Girard é conhecido por suas teorias que consideram o mimetismo a origem da violência humana que desestrutura e reestrutura as sociedades, fundando o sentimento religioso arcaico. Girard se auto-define como um antropólogo da violência e do simbolismo religioso.

[14] Gênesis capítulo 3.



Santo Agostinho: vida e obra.
fevereiro 22, 2012, 8:57 pm
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A influência do pensamento e da vida de  Aurelius Augustinus, ou Santo Agostinho de Hipona, se faz refletir na cultua ocidental até os nossos dias. Se falamos em bem-mal, céu-inferno, e todas as categorias dualistas da nossa visão de mundo é fruto da influência do platonismo refletido em seu pensamento.  Inicialmente o objeto aqui é apresentar um resumo sobre a vida e a obra de Santo Agostinho.

O contexto sócio-histórico nos mostra a relevância da sua obra que marca o fim de uma era importante da Igreja dos primeiros séculos, era denominada pelos historiadores e teólogos de Patrística. A Patrística, ou como é também conhecida, a Era dos Pais da Igreja, foi um período onde a igreja eclesiasticamente começa a definir o dogma mais importante de cristianismo: a Trindade. Questões como a divindade de Cristo, a validade dos sacramentos (batismo e eucaristia) e as divergências trinitárias são discutidas nos chamados concílios ecumênicos e dão a forma dos dogmas eclesiásticos através dos credos que são escritos ao longo destes primeiros séculos.

 

A vida e a obra de Agostinho acontecem dentro deste contexto, de formulação teológica e de rumos que a Igreja irá tomar durante o todo o medievo europeu até o período das reformas protestantes durante a Idade Moderna.

 

A fonte mais importante para a escrita de sua biografia é o seu conhecido livro “Cofissões”, escrito no final da sua vida, onde ele faz uma releitura de toda a sua obra, apontando algumas mudanças de posicionamentos anteiores.

 

Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família rica, a 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores conseqüências do pecado original; dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, que atribuía realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu a solução do problema do mal e, por conseqüência, uma justificação da sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razões de ordem espiritual.

 

Seu contato com o Maniqueísmo é fruto de uma crise pessoal entre o bem e o mal. A filosofia maniqueísta pensava a realidade partindo de dois princípios dialéticos – Bem e Mal – sob os quais toda a realidade existia. Bem e Mal eram entendidos como duas forças supremas e contrapostas, o que para a Agostinho era uma explicação mais racional da realidade em relação a cosmovisão oferecida pelas Escrituras do Antigo Testamento.  Dentro do Maniqueísmo existiam duas distinções entre os seguidores. Uma, a dos “ouvintes”, abrangendo o grupo de seguidores que se esforçava para alcançar o bem através do aperfeiçoamento individual, contudo estes aceitavam desfrutar da vida dos prazeres terrenos. O segundo grupo, dos “perfeitos”, contrariamente ao primeiro grupo, levavam uma vida de absoluta renúncia, bem ao estilo do padrão gnóstico. Agostinho era um mais um “ouvinte” do Maniqueísmo e logo iria se desapontar com Faustus de Milevis, um professor maniqueísta a quem Agostinho esperava receber grandes ensinamentos, contudo ele se decepciona com sua sabedoria causando a perda da fé maniqueísta, que vai dar lugar ao neoplatonismo na vida de Agostinho.

 

Ao abandonar o maniqueísmo, abraça a filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte chegara a uma concepção cristã da vida – no começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por razões de luxúria. Durante este período o autor esteve em Roma, e em seguida em Milão onde vai ter contato com o neoplatonismo, que oferece uma explicação mais convincente a respeito da natureza incorpórea de Deus e a existência do mal. Estes dois aspectos filosóficos constituem uma dúvida existencial para Agostinho, pois o mal em sua vida se constitui um obstáculo para ele e os outros santos de sua época, que é profundamente marcada pela filosofia grega, e mais ainda pelo gnosticismo.  É uma grande crise de valores morais enraizadas no seu passado de “prazeres” da vida, que agora colocam tais questões a sua frente. O neoplatonismo reúne a “auto-renúncia de Cristo” e a “vida filosófica” dos platônicos a busca do aperfeiçoamento “salvífico”.

 

Agostinho considera a filosofia praticamente, platonicamente, como solucionadora do problema da vida, ao qual só o cristianismo pode dar uma solução integral. Todo o seu interesse central está portanto, circunscrito aos problemas de Deus e da alma, visto serem os mais importantes e os mais imediatos para a solução integral do problema da vida.

O problema gnosiológico é profundamente sentido por Agostinho, que o resolve, superando o ceticismo acadêmico mediante o iluminismo platônico. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a certeza da própria existência espiritual; daí tira uma verdade superior, imutável, condição e origem de toda verdade particular. Embora desvalorizando, platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao conhecimento intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto, são fontes de conhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a Verdade de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as idéias platônicas. No Verbo de Deus existem as verdades eternas, as idéias, as espécies, os princípios formais das coisas, e são os modelos dos seres criados; e conhecemos as verdades eternas e as idéias das coisas reais por meio da luz intelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como se vê, é a transformação do inatismo, da reminiscência platônica, em sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a característica fundamental, que distingue a gnosiologia platônica da aristotélica e tomista, pois, segundo a gnosiologia platônica-agostiniana, não bastam, para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças naturais do espírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de Deus.

Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se, durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho e dalguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cuja doutrina e eloqüência muito contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anos de idade.

 

Depois da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para Tagasta. Aí vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro numa das suas propriedades alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a igreja de Hipona até à morte, que se deu durante o assédio da cidade pelos vândalos, a 28 de agosto do ano 430. Tinha setenta e cinco anos de idade.

Após a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada Escritura, da teologia revelada, e à redação de suas obras, entre as quais têm lugar de destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos: Contra os acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre a música. Interessam também à filosofia os escritos contra os maniqueus: Sobre os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza do bem.

Dada, porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam juntas, compreende-se que interessam à filosofia também as obras teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira

A controvérsia dos donatistas: Como herdeiro de uma época repleta de conflitos a respeito dos dogmas eclesiásticos, após combater o Maniqueísmo, Santo Agostinho vai combater os cismas da Igreja tendo a controvérsia donatista como um dos principais conflitos em que vai se envolver.

 

No período de Diocleciano (303-305 d. C.) os cristãos são seriamente perseguidos, e alguns com o intuito de fugir do martírio, entregam as cópias das Escrituras e outros textos nas mãos dos magistrados romanos. Esta atitude vai por em dúvida a validação dos bispos ordenados pela igreja que cederam as perseguições. Tal situação merece uma contextualização. A igreja apostólica surge em meio às perseguições do Império. Temos na literatura sagrada o martírio como uma sublimação da fé em Cristo, como o caso de Estevão, o primeiro mártir do cristianismo que vão se tornar um elemento simbólico para os cristãos da época. Ser um mártir é visto para os crentes dos primeiros séculos como uma questão de honra máxima, é seguir a Cristo até as últimas conseqüências, mesmo que esta seja a morte. Esta mentalidade pode ser comprovada pela história da igreja, que sobreviveu nas catacumbas romanas, e tem como exemplo o testemunho de vários crentes da época, incluindo mulheres com seus filhos que se entregam à morte nos “espetáculos” do Coliseu romano. Houve uma divisão com o fim da perseguição a partir do século III, onde pairava a dúvida a respeito dos bispos donatistas, assim chamados por causa do padre Donatus.

 

Neste contexto de divisões religiosas, políticas, e raciais, Agostinho começam a desenvolver sua obra em torno de questões básicas, como a natureza da Igreja, a relação entre Igreja e Estado e a os sacramentos. Com base nestes conflitos ele vai desenvolver a distinção entre Igreja visível e a invisível. Estes fatos vão influenciar o Estado como elemento de força no combate aos cismas donatistas, que começavam a ameaçar a unidade eclesial. A partir de então surge a controvérsia em relação à validade não só da ordenação dos bispos mas também, sobre a sacralidade das ordenações feitas por tais bispos. Assim, a geração de bispos pós-donatistas é questionada e em alguns casos, eles deveriam ser aceitos pela igreja através de uma nova imposição de mãos. Casos como batismo e ordenação passavam por este processo. Agostinho faz duas distinções do sacramento. A visão de sacramento para ele era mais ampla do que a comumente aceita por nós até hoje. O sacramento e a sua validade são considerados aspectos distintos. Para ele, o batismo e a eucaristia são ordenanças recebidas diretamente de Cristo pela Igreja, e a validade independe da instituição, o que diferia da idéia de Cipriano. Com isso ele começa a desassociar os sacramentos da instituição, universalizado os sacramentos e a própria igreja da época. Contrariando os donatistas que queriam limitar a Igreja no norte africano – daí o aspecto político da controvérsia – Agostinho entendia Igreja e Sacramentos já dentro da sua perspectiva igreja visível e invisível, expressada na sua obra A cidade de Deus. O que pertence e está dentro da Igreja não pode ser alterado pelo homem.

A controvérsia pelagiana: Pelágio era um nativo das ilhas britânicas e o que é conhecido de sua vida e obra data de 405 d.C. , onde em Roma ele teve seu primeiro contato com a teologia agostiniana. A base da teologia formulada por Agostinho era a total dependência da graça – o que o fez resolver a questão sobre o dualismo maniqueísta – contrariando Pelágio. Sua doutrina vai ser combatida na África e no Oriente onde ele consegue adeptos, e o bispo Inocente apóia sua deposição pelos concílios africanos. Há por trás do pelagianismo toda uma questão que envolve teologia e poder dentro do Estado Romano.

 

Pelágio estava disposto a defender a responsabilidade humana diante da graça divina. Estava cansado de aceitar as desculpas imputadas por aqueles que queriam atribuir seus pecados à fraqueza e incapacidade humana. A diferença entre Agostinho e Pelágio era que o primeiro não estava disposto a abandonar a absoluta necessidade da graça, mesmo enquanto defendia a liberdade, enquanto que o último acreditava que a doutrina da graça de Agostinho era uma ameaça para a responsabilidade e liberdade humanas.

 

A disputa contra o pelagianismo vai gerar uma série de obras, tais como Sobre a predestinação dos santos e Sobre o dom da perseverança.

 

Teoria do conhecimento: ao contrário do neoplatonismo, para Agostinho o conhecimento deve ser possível, ele é uma emanação divina. Mesmo a dúvida deve saber que é dúvida, quem duvida, mesmo não tendo respostas, sabe de sua dúvida, tem consciência dela. Para ele há a scientia e a sapientia, esta última sendo o conhecimento das coisas eternas e imutáveis de Deus. Para ele Deus é a emanação de todo o saber,e  com isso Agostinho vai fundindo o neoplatonismo com a sua teologia, num misto de filosofia neoplatônica e sabedoria. Uma outra questão contra o neoplatonismo é a pré-existência das almas, para Agostinho a alma emana de Deus e não fica vagando desencarnada do corpo. Deus ao criar o mundo ele o faz a partir do nada, sendo assim, a alma tem um início assim como toda a criação. E com isso ele acaba definindo seu conceito de tempo.  O tempo existe pelas coisas criadas, que foram feitas de matéria distintas de Deus, e a partir delas o tempo passa a existir. Deus no seu entendimento surge a partir da busca de uma verdade última, que deve ser perfeita. Este Deus é criador de tudo o que existe, fez o universo do nada.

 

Agostinho sintetizou a cultura da antiguidade com a teologia cristã de sua época. Sua concepção teológica está enquadrada na igreja antiga e seu posicionamento filosófico,  era neoplatônico. Com isso ele se funda em questões antropológicas na igreja, diante dos conflitos donatistas, a doutrina da Trindade e o pelagianismo. A partir disto ele vai debater questões como a graça irresistível, a predestinação e a igreja invisível.

 

Santo Agostinho é um homem do seu tempo. Tendo em vista o seu tempo ser uma era de crise, com a crescente invasão bárbara denotando a ruína do mundo romano e consecutivamente, a queda moral da sociedade de sua época – incluindo a Igreja atrelada ao Estado – Agostinho é remetido a distinguir as realidades metafísicas da existência. Questões como batismo, eucaristia e o próprio conceito de Igreja são discutíveis no plano temporal e atemporal. Para ele o batismo realizado por um bispo donatista poderia ter ou não sua validade, pois tudo depende da graça divina. Diante da dependência da graça, o batismo válido para a igreja visível não garante sua aceitação na igreja invisível, que é parte da realidade eterna e imutável. Essa distinção do temporal e eterno são aspectos importantes que vão deixar suas marcar presentes na idade média e em toda a cristandade após a era das reformas protestantes do século XVI.

 



A história da homilética
fevereiro 22, 2012, 8:46 pm
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Não é mais novidade para a nossa sociedade, ver pastores e padres pregando na televisão. Está tão enraizado no cotidiano que não causa mais nenhum espanto. Mas aquilo que estes sujeitos fazem na televisão e rádios, é parte de uma tradição presente na história do cristianismo desde o seu princípio. É o que em linguagem teológica aquilo que chamamos de Homilética.

A história da homilética é a história da tentativa de entender o acontecimento homilético, bem como a história do reconhecimento do trabalho dominical de pregação dos pastores e, desde este século, também das pastoras. Considerando que a homilética é uma prática teológica, devemos nos ocupar com a reflexão que está presente na sua prática. Precisamos alargar esse conceito de homilética que se resume a um sermão ou pregação de alguns minutos (ou horas). A homilia é o próprio cristianismo na experiência viva das pessoas. A palavra antes de ser texto, foi carne, sangue e suor na história.

Em geral uma pregação é um discurso profético proferido no púlpito e é designado como “prédica”. Tal expressão é desconhecida, pois usualmente encontramos nas igrejas conceitos como “sermão” e “homilia” no âmbito católico, ao passo que em algumas tradições a prédica é designada como “mensagem”, que são conhecidos geralmente como “pregação”.

História da prédica.

Na igreja antiga e na idade média já estava presente a prédica. Tanto no Antigo Testamento, quanto em Jesus como na vida dos apóstolos. Aqui cabe romper com o paradigma de que a prédica começa apenas com a Reforma Protestante. Não é privilégio dos protestantes a prática da pregação. Se considerarmos a homilia como algo maior, veremos que em todo o momento o acontecimento homilético esteve presente. Anteriormente a prédica existia exemplificada em outras práticas da Igreja. Não devemos confundir “igreja da palavra” com “instituição verbal”. A liturgia é a prédica da Igreja.

As primeiras reflexões sobre teoria e forma das prédicas foram desenvolvidas por São João Crisóstomo (407 d.C.). Mais adianta Santo Agostinho irá afirmar que o amor de Deus é a única forma pela qual podemos compreender as Escrituras. Na Idade Média a tradição prédica era diversificada. A prédica de modo nenhum passou a segundo plano, mas sim o sacramento tornou-se o centro do culto. A prédica tornou-se ameaça do clero e o pregador virou o arauto que deveria preparar a comunidade para o terror do dia do juízo final. No século VIII, Carlos Magno determinou que toda a comunidade deveria ser feita uma prédica dominical no culto para edificação e instrução do povo. Até então as predicas eram feitas em latim e não compreendidas pelo povo. Mas o clero comum não estava apto para tal tarefa, por serem formados apenas para celebrar as missas. Assim, com exceção das universidades, as prédicas para o povo passaram a ser feitas pelas ordens mendicantes com o tema único da penitência. Assim a mensagem passa a ser enfocada na penitência e controle rigoroso pela confissão auricular.  A partir de então surgem prédicas em favor das indulgências, razão das reformas do século XV ao XVI.

Lutero e a Reforma.

Lutero se apresentou extremamente crítico em relação à Igreja de Roma, condenando sua prática como tolices, histórias mentirosas e lendárias. Mas o próprio Lutero não elaborou uma doutrina da prédica. Mas em seu pensamento podemos perceber a sua predileção pela mensagem oral, como forma escolhida por Deus para se comunicar à humanidade. Sua base está no fato de que Deus se revelou através da sua Palavra encarnada (logos). Juntamente com a Reforma e a ênfase na prédica temos Gutenberg e o desenvolvimento das técnicas de impressão, facilitando a divulgação da palavra escrita. Na Igreja Medieval havia pregação através da liturgia como um todo, enquanto que na Reforma temos uma troca de uma prédica simbólica (liturgia) pela comunicação direta pela palavra oral.

Ortodoxia , século XVI (fim) até XVIII (início).

As igrejas reformadas vão utilizar a prédica como elemento doutrinador a fim de educar os fiéis na identidade confessional. É uma atitude de afirmação da identidade. O Pietismo surge para justamente contrapor a este quadro, no contexto do iluminismo, preocupado com aspectos da vida religiosa, renovação, renascimento, etc. a palavra é conversão. O iluminismo com a prédica de que a razão irá salvar a vida da sociedade. Schleiermmacher comunica aquilo que sente profundamente em si mesmo. Há uma inclinação para a sensibilidade artística no sermão. Por outro lado, Karl Barth vai dizer que a prédica é um instrumento tão somente de proclamação da palavra de Deus, e não mais que isso. Não há espaço para sentimentos do pregador. A pregação da palavra de Deus é a palavra de Deus.

A influência da tradição homilética anglo-saxã sobre o protestantismo latino-americano.

No século XIX se formaram sociedades missionárias na Europa e nos Estados Unidos que veio anunciar o cristianismo na América Latina. A própria idéia de missão está permeada pela teologia dos grandes avivamentos, dotada de uma grande piedade supradenominacional que desejava despertar as pessoas para a graça de Deus.

Esta teologia das missões irá ser responsável por um tipo de prédica no protestantismo latino-americano. Eram prédicas dirigidas à emoção dos ouvintes. Buscava despertar seus sentimentos pela fé cristã, enfatizando a conversão e adoção de um novo estilo de vida. Seu interesse era promover o renascimento espiritual das pessoas. Alguns elementos estão presentes em tais prédicas, como o Legalismo, muito influenciado pelo pietismo e puritanismo. Além disso temos a prédica política. Como o ser humano é por natureza um ser político, a prédica efetivamente será permeada por esta realidade. Outros elementos como a retórica, poética estão presentes na linguagem, que visa causar um efeito no ouvinte. Daí a prédica ser também ser dotada de elementos retóricos e poéticos, visando uma ação comunicadora.




A missiologia no século XX: Pacto de Lausane e o CMI
fevereiro 22, 2012, 8:30 pm
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Conferência de Edimburgo, 1910A missiologia no século XX: Pacto de Lausane e o CMI.

 

Nosso objetivo neste texto é discutir o projeto missionário presente em dois documentos surgidos em momentos distintos, e que por sua vez, refletem a realidade eclesiológica do tempo presente.

Os dois documentos em questão, tanto o Pacto de Lausanne quanto às resoluções da 9ª Assembléia do CMI, são fruto deste contexto onde ocorre a reformulação de um novo paradigma missionário para o século XXI. Com a crescente crise do socialismo soviético e dos movimentos emancipatórios – que mais se assemelham a formas de salvação secularizadas (feminismo, movimentos estudantis, contra-cultura e outros) – trazem à tona a necessidade de se pensar uma nova proposta de Teologia da Missão.

 

Esta nova fase do projeto missionário mundial é caracterizada por duas demandas trazidas à tona pela crise do mundo pós-Guerra Fria, que são o cuidado com a salvação espiritual e as questões sociais insurgentes em diversos setores da sociedade. Permanece a preocupação com a salvação das almas e agora, a Missão se vê diante do desafio de responder as demandas sociais que não foram atendidas pela proposta iluminista. Cabe lembrar, que neste momento, o paradigma missionário está caminhando em um processo de constantes metamorfoses desde o século XIX. Se no passado o projeto iluminista de emancipação da humanidade através da racionalidade científica não logrou grandes resultados, no presente, a Igreja ressurge em seu fervor missionário, contudo, questionando os paradigmas missionários que faliram junto com a proposta iluminista de evangelização como sinônimo de civilizar.

 

Assim podemos destacar como paradigmas missionários emergentes alguns aspectos que servirão para contextualizar a leitura dos documentos missionários de Lausanne e do CMI. Em primeiro lugar, podemos dizer que este novo paradigma é marcado pela passagem de uma visão missionária em que a igreja passa a ser igreja-com-os-outros. As conferências missionárias mundiais vêm mostrando a evolução deste novo paradigma, como Edimburgo (1910) e pergunta sobre a ausência de um entusiasmo missionário do Ocidente; Jerusalém (1928) e o abandono da distinção entre países cristãos e não-cristãos, englobada pela Guerra Mundial, simboliza o auge da crise do paradigma missionário do século XIX, na constatação de que a América do Norte e a Europa também precisam de missão. A missão centrada na igreja passa a uma igreja que está centrada, que só se faz igreja estando em missão no mundo. Segundo Bosch, a obra salvífica precede a igreja e a própria missão. A missio Dei nos converte uma fé missionária em que a “missão mundial cristã é de Cristo, e não é nossa” [1].

 

Surge assim a seguinte questão: A missão deve estar preocupada com a salvação individual e relegar a um segundo plano a preocupação com o ser humano integral? Mesmo no protestantismo norte-americano, podemos ver em Jonathan Edwards (1703-1758) a preocupação com a obra da Redenção com duas faces. Uma é a de converter, santificar e glorificar o ser humano; a outra está relacionada ao plano de Deus em redimir o mundo através da Providência. Mas para Edwards os dois projetos são inseparáveis[2].

 

Contudo, ao longo do tempo estes dois elementos vão se distanciando de forma sucinta, ganhando a primazia o aspecto da preocupação com a salvação da alma. Há um retorno a visão agostiniana dualista, onde a Cidade de Deus se apresenta como um alvo que deve ser perseguido pelo cristão, ou seja, o objetivo da evangelização é salvar a alma das pessoas, e o resto é uma conseqüência relegada ao segundo plano. Com o tempo os Grandes Avivamentos revelaram a falência da proposta de salvação integral presente no início do movimento missionário norte-americano. Essa idéia ficará clara na objeção presente entre o Fundamentalismo e a “terrenalidade” do Evangelho Social no final do século XIX.

 

Segundo Bosch, é nos anos 1970 que ocorre a crise na idéia de salvação. A queda da esperança nos “secularismos” [3] e os movimentos libertacionistas de salvação que começam a ser postos em questão, aonde a salvação viria com o fim da injustiça, da pobreza e das formas de servidão, causou um profundo abalo nas perspectivas missionárias da primeira metade do século XX.

 

“Não pode restar dúvida de que a interpretação de salvação que emergiu no pensamento e prática missionários recentes introduziu nessa definição elementos sem os quais ela seria perigosamente estreita e anêmica. Num mundo em que as pessoas dependem umas das outras e cada indivíduo existe em uma rede de relacionamentos inter-humanos, é de todo inviável limitar a salvação ao indivíduo e a seu relacionamento pessoal com Deus. Ódio, injustiça, opressão, guerra e outras formas de violência constituem manifestações do mal; a preocupação com a humanidade, a vitória sobre a fome, a doença e a falta de sentido fazem parte da salvação pela qual esperamos e trabalhamos. Os cristãos oram que o reino de Deus venha e que a vontade de Deus seja feita assim na terra como no céu (Mt 6,10); conclui-se daí que a terra é o locus da vocação e santificação da pessoa cristã.” [4]

 

 

Em 1974 ocorre a reunião do Congresso Internacional de Evangelização Mundial em Lausanne que propõem chama “Pacto de Lausane”. Neste documento ficam expostas as concepções missionárias que englobassem a pregação do evangelho e a responsabilidade social. Participou desta conferência John Stott, que em resume bem a proposta do Pacto:

 

“Agora vejo mais claramente que não apenas as conseqüências da comissão, mas a comissão em si precisam ser entendidas no sentido de incluir a responsabilidade tanto social quanto evangelística, para que não nos tornemos culpados de distorcer as palavras de Jesus”. [5]

Mas apesar do documento de Lausanne preconizar a relação entre a evangelização e a ação social, o resultado conseguinte foi uma primazia da conversão em detrimento da responsabilidade e da visão com o ser humano em sua integralidade. Logo a seguir, em 1982, reúnem-se em Grand Rapids, Michigam 40 estudiosos em uma “Consulta sobre a Relação entre Evangelização e Responsabilidade Social”. Neste encontro alguns participantes se sentiram incomodados com o PL e sua primazia pela evangelização. Ficou estabelecido que entre a escolha de matar a fome e salvar a alma, devemos lembrar que o último representa maior importância, pois, a salvação espiritual de uma pessoa é mais importante do que seu bem-estar temporal e material. No Pacto de Lausane ficaram afirmados os cinco pontos principais que caracterizam o que chamamos de movimento evangelical:

 

  1. Crença no único Deus eterno, criador e salvador do mundo;
  2. Inspiração Divina e infalibilidade das sagradas escrituras;
  3. Há um só salvador e um só evangelho;
  4. Evangelizar é difundir as boas novas de Jesus Cristo morto e ressurreto;
  5. Deus é o Criador e Juiz de todos os homens;
  6. O propósito de Deus é que haja unidade universal na Igreja;
  7. Deus está levantando igrejas jovens para reavivar o movimento missionário, pois temos mais de dois milhões de pessoas a serem evangelizadas, e isto é preocupante;
  8. Deus está inspirando novas estratégias missionárias, com o surgimento de igrejas enraizadas em Cristo e relacionadas com a cultura local;
  9. O foco da evangelização é o crescimento numérico da igreja, sendo esta uma preocupação distinta do crescimento espiritual dos novos convertidos;
  10. Reconhecimento de que as ideologias externas da Igreja representam a atuação do inimigo presente nas propostas do secularismo;
  11. O Estado tem o dever de garantir a paz e a justiça para que as igrejas possam exercer sua tarefa;
  12. Por fim a afirmação de que a Igreja tem sua essência na missão, que é inspirada pelo Espírito e a crença de que Jesus Cristo voltará para buscar a igreja.

 

Nesta proposta podemos perceber que há a primazia de uma visão que já estava presente no nascedouro do movimento evangelical. Em 1910, a Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana Americana, ficaram decididos os cinco pontos fundamentais da fé cristão que são: O nascimento virginal de Cristo; a ressurreição corpórea de Jesus; a inerrância das Escrituras; a teoria substitucionária da expiação e a iminente volta de Cristo[6].

 

Agora passemos a análise da proposta do CMI, em sua 9ª Assembléia Mundial ocorrida em Porto Alegre em fevereiro de 2006, reunido mais de 40 mil pessoas, com o tema “Deus, em tua Graça, transforma o Mundo”. O tema já traz em si uma tonalidade muito distinta do PL.

 

As questões discutidas na Assembléia estiveram em torno de alguns que visam definir as prioridades de trabalho para os próximos anos. Estas prioridades foram trabalhadas e sistematizadas pela secretaria geral, em Genebra, e foram traduzidos nos seis eixos programáticos a seguir:

1. O CMI e o movimento ecumênico no século XXI
2. Unidade, missão, evangelismo e espiritualidade
3. Testemunho público: abordando questões de poder e afirmando a paz
4. Justiça, diaconia e responsabilidade pela Criação
5. Formação e educação ecumênicas
6. Cooperação e diálogo inter-religiosos

Algumas das declarações do encontro resumem bem a proposta do CMI, como vemos a seguir:

“Nós, os delegados para a Nona Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas, cremos em num só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, que tem trazido diálogo por graça e habilitado a permanecer juntos, mesmo quando isto não tem sido fácil. Tem sido feito esforço considerável para ultrapassar as divergências. Somos uma comunhão de igrejas que confessam o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador, segundo as Escrituras, e, por isso, procuram cumprir as suas palavras. Reafirmamos que o objetivo principal da bolsa de igrejas no Conselho Mundial de Igrejas é uma chamada para uma visível unidade na fé, expresso em adoração eucarística e na vida comum em Cristo, através do testemunho e do serviço ao mundo, e para avançar no sentido da unidade a fim de que o mundo possa crer. Nossas contínuas divisões são verdadeiras feridas ao corpo de Cristo, de Deus e da missão no mundo que sofre.”[7]

 

Ficou decidida nesta Assembléia uma “Nova Constituição”. Os delegados revisaram a as regras que norteiam o CMI, adotando o processo de decisões baseado no Consenso e alterando os critérios de membresia. Esta atitude significa a inclusão de igrejas de diferentes contextos culturais, presentes com a participação das Igrejas Ortodoxas.

O tema da “Unidade da Igreja” trouxe a provação de texto “Chamado para ser uma só igreja”, encorajando os membros do CMI priorizar aos temas de unidade, catolicismo, batismo e oração. Os delegados solicitaram que o movimento ecumênico oferececem ao mundo “uma mensagem espiritual cristã, coerente e cheia de graça”. Também foram fortalecidas as relações com a Igreja Católica e com as Igrejas Pentecostais. Seguindo o chamado do Secretário Geral a Assembléia apoiou uma proposta de “explorar a viabilidade da estruturas para assembléias do CMI” que se poderia vincular a reuniões globais de outros corpos de igrejas nos próximos anos. Destacamos a participação dos jovens na elaboração e discussão ocorrida no evento.

Segundo o seu coordenador, “O CMI deve fazer menos, fazê-lo bem, de uma forma colaborativa e interativa”, disse o Rev. Dr. Walter Altmann (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil).

As resoluções e propostas discutiram ainda temas como a Igreja em busca pela paz, questões de interesse público como o terrorismo, reforma agrária, a violência em todas as suas esferas, e o diálogo com os seguidores de outras fés.

 

Conclusão.

A partir de uma leitura comparada das duas propostas, podemos perceber elas estão situadas em dois pólos que são oriundos de um processo histórico ao qual está inserida a missiologia.

Vimos que a missão ao longo do século XX passou por uma crise de paradigma, que havia sido estabelecido no século XIX tendo como influencia o projeto civilizatório do iluminismo na missão da igreja. A ruptura com este paradigma trouxe uma nova situação a missão. Agora as igrejas não são mais o centro da vida e precisam buscar alternativas missionárias. Os diversos encontros missionários do século XX ficaram em torno de duas correntes, de um lado os evangelicais e do outro o movimento ecumênico.

A questão central é como apresentar uma proposta missionária para o mundo contemporâneo? Surgem diversas alternativas, desde o surgimento dos movimentos secularizantes na igreja, assim como o recrudescimento do fundamentalismo em algumas vertentes evangelicais. Podemos concluir que a proposta de Lausanne se enquadra neste último movimento, com uma visão eclesiológica ainda muito arraigada no protestantismo missionário do século XIX. Já a 9ª Assembléia do CMI em Porto Alegre, traz uma abertura de horizontes em relação ao projeto missionário, incluindo o diálogo e a abertura ao seguimento de Cristo que se fez mundo com o mundo.

 


[1] BOSCH, p. 447.

[2] Idem, p.483.

[3] Seguimos aqui o conceito de secularismo a análise de Harvey Cox,

[4] BOSCH, David J, Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão. São Leopoldo, RS:EST, Sinodal, 2002, p. 475.

[5] Idem, p. 485.

[6] NETO, Luis Longuini. O Novo Rosto da Missão: Os movimentos ecumênico e evangelical no protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002. p.22-23